sábado, 26 de março de 2011

Dias sem véu - Jorge Gomes Ferreira





Desvio
Eh! senhores: tirem-se da frente que vou a pensar. Desviem-se! (Vocês, também, árvores e marcos postais.) Vou a pensar e, quando penso, pareço cego ou vejo apenas o que interessa ao meu fogo.

Quando penso?... Pensar?... Mas isto já nem é pensar, senão moinha de palavras, resíduos de orações em tropel, no esforço de querer compor mentalmente a crónica do meu dia de hoje, mais um «dia sem véus» do meu calendário, que assim me habituei
a denominar todas essas vinte e quatro horas de lucidez extraordinária em que sinto romper-se a cortina fluida que, entre mim e o mundo, lhe embrandece as
crueldades e as arestas.

Mal deitei as pernas fora dos lençóis e me pus a ensaboar a cara ao espelho, logo percebi que me encontrava num desses tais dias implacáveis em que a pele nos aparece
apenas como um conjunto lívido de poros e não há imaginação que lhes esbata as impigens.

Mas, apesar de tudo, não afastei os olhos, enojados da realidade como de costume; antes confessei heroicamente: «Ena, que feio!» E depois, com um pedaço de sabonete, escrevi no vidro esta sentença de vingança não sei contra quem: «A morte existe!»

E, durante toda a tarde, apeteceu-me andar com um pau de giz na algibeira para, de vez em quando, no meio de certas conversas, escrever nas paredes o
meu comentário de arrepio: «A morte existe! Sim. A morte existe!» (E existe mesmo.)

Nesses dias, embora os amigos e inimigos me acoimem de pessimista, rude e teimoso, não há forças humanas nem extraterrestres que me convençam a
deixar de olhar leoninamente para o mundo, de frente, no júbilo da amargura viril de não tolerar ópios nem máscaras na vida, cuja beleza resulta principalmente
da coragem de encará-la sem maciezas de tules a cobrirem-na de disfarce.

Senhores: ao menos uma vez por semana rasguemos os véus e tenhamos a intrepidez de ver as borbulhas mesmo nos rostos mais amados; e de dizer que os nossos filhos não são assim tão inteligentes como a nossa invenção os imagina geniais; e de que nós mesmos, a despeito de tanta jactância, mal chegamos à média da craveira comum e, com vossa licença, não passamos, como todos os outros, dumas refinadas bestas!

Deixemos o violoncelo da ilusão permanente aos pálidos maricas que, nem na arte, nem no amor, nem nos negócios, nem na política, podem, ao menos uma vez por semana, fitar a realidade sem tergiversar, num destemor de fístulas e vilipêndios.
Nem intentem persuadir-me de que esta atitude diminui o mundo e o seca de desencanto e pus.

Pelo contrário: em meu entender, a visão brutal da existência, complicação de frutos vistosos com minas de bichos, de deusas de espuma com lodo nas
veias, de rainhas com vísceras de esterco, de tiranos de cuecas e de heróis de alma exânime; toda esta harmonia dissonante de mulheres belas algemadas às
eternas sujidades sangrentas e de santos com subterrâneos de crápula nos olhos, dá uma consistência de esqueleto feio à moleza de peles bambas da vida que
só então se arredonda em formas de beleza total com perfeições e máculas.

A única desvantagem dos «dias sem véus» reside na agrura e na impaciência com que ouvimos — ah, às vezes com que piedade desabrida! — os pobres
mortais agarrados aos narcóticos deste mundo (como nós ontem, afinal de contas, e amanhã outra vez, por certo).

Eu, pelo menos, nunca consigo lidar com eles sem dissídios amargos, nem o barafustar raivoso contra essa gente que só admite a verdade com uma condição:
a de que lhe seja mentida.

Por vezes até, como neste minuto exacto (são 11 horas da noite e desço a Avenida da Liberdade), a minha irritação atinge o tom acerbo da injustiça aparente contra certos desgraçados que, normalmente, me encanta coroar de lágrimas de enaltecimento romântico.

Vejam os senhores, por exemplo, esta mulher que vai aqui ao meu lado, velha de miséria (20, 30, 40, 50 anos? 20 000 anos, talvez!) e a cara tão cortada de rugas que lhe desenham uma expressão de choro constante. Coitada! Até quando ri, chora sempre.

Tem três filhos. Um ainda de colo, com lamúrias de ranho. (Palmadas no rabo.
Cala-te, meu estafermo!») E à frente, de mãos dadas, um garoto e uma garotita com esse ritmo de pés magoados, de salta-pocinhas, que há na marcha de todas as crianças descalças.

De repelão, porém, o caganito, fralda de fora, calções com remendos, soltou-se da irmã e correu para a grade que cerca um daqueles lagos da Avenida,
onde as estátuas de dois barbaças nus — agora pudicamente vestidos de hera — fazem jorrar, como prestidigitadores, água de dois potes de mármore. E, indiferente ao chamamento da mãe (aliás cada vez mais ocupada em dar surras no trambolho que trazia ao colo), estacou, a olhar deslumbrado para o lago.

Olhei também.

As lâmpadas azuis, amarelas, verdes e vermelhas da esplanada próxima espelhavam um prodígio de cores na superfície das águas.

Ignoro, de todo em todo, o que aquele encantamento sugeria na alma do petiz, quieto, subjugado, sem bulir os olhos, como que imbuído de respeito mágico. A mim, parecia-me um palácio maravilhoso disseminado nas águas... uma moradia de vitrais de
lume com cintilações de abismo... um mistério de chamas movediças, onde habitava uma deusa qualquer de carne de cor e barbatanas de cetim... Não sei bem.
Só sei que toda a família estacionou durante alguns minutos em contemplação pasmada diante daquele naufrágio dum barco de balões a arder. Até o miúdo do colo interrompeu a rabugem. E a pequena sentou-se num banco, de olhos semicerrados para
sonhar melhor.

Depressa, porém, a mãe se fartou da miragem.

— Vamos, filhos, que se faz tarde.

A petiza obedeceu logo e levantou-se submissa; mas o miúdo, de mãos fincadas na grade, não arredou pé. Que veria ele para além do meu palácio dis-
solvido nas águas? O esplendor dum Arlequim enrugado de cores? Uma escada luminosa a descer até ao silêncio das cavernas líquidas com peixes de esmeralda
e enguias de rubis?

Ah! se não estivesse num «dia de véus rasgados», talvez aquela maneira de matar a fome de pão, com imagens das festas dos outros, me comovesse. Mas hoje não.

Hoje, aquela ginástica poética da ilusão suscitava-me apenas não sei que atmosfera de mal-estar indefinido, onde a criança adquiria lentamente a qualidade de símbolo inesperado e subtil.

— Que luzinhas tão bonitas!

E o miúdo, de olhos redondos duma pureza de lua, voltou-se para a mãe, na súplica de demorar-se mais um bocadinho, só mais um bocadinho, a afogar os olhos naquele castelo de quimeras.

A pobre mulher forcejou um sorriso que mal se adivinhava no choro eterno da cara e, numa carícia de consentir, poisou brandamente a mão sobre a cabeça do filho, sangrenta de crostas e de feridas.

— Vamos que se faz tarde.

Carícias, hem? Bates-lhe, de manhã até à noite, porque chora, porque está calado, porque pede pão,por isto, por aquilo (Toma, meu este! Toma, meu aquele!) e agora, que o vês embevecido nas sombras das luzes dos outros, fazes-lhe festas, hem? Blandícias!
Em vez de lhe chegares uma bofetada valente, dás-lhe beijinhos. Vá, bate-lhe! Desperta-o desse primeiro vinho de sonho, acordado. Instiga-o a atirar pedras para a água e a partir os vidros do Palácio... Palácio? Qual palácio qual carapuça! Água, frio,
fome, miséria e folhas secas a flutuarem como peixes amarelos. Mais nada. Vá, prega-lhe um estalo. (Só um.) Cria-o alheio a todas as mor finas da falsa beleza, livre de mentiras, de imagens de transcendente oco, de respeitos tíbios, de superstições vãs, de liames de sobrenatural e de todos os mais reflexos dos festins do mundo — se queres vê-lo, um dia, não sei como nem quando, transformar a realidade e dar-lhe finalmente
um sabor a ilusão. Percebeste?

Não, não percebeste. E como havias de perceber, se tudo isto se passa na minha cabeça e não me podes ouvir os pensamentos — pobre mulher de olhos de cadela, com os filhos a reboque e essa cara de choro insistente, até quando não choras?

— Que luzinhas tão bonitas! (Ah, que bom estalo nessa cara!)

E o miúdo lá ficou, de barriga vazia, a contemplar as migalhas das luzes dos outros... cadáver dum palhaço apodrecido de cores, a vogar nas águas do lago... enquanto a mãe lhe afagava as pústulas da cabeça rapada à escovinha.

Até quando?

Até sempre? Até o fim do mundo?

Eh, senhores: tirem-se da frente que vou a pensar.

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