terça-feira, 29 de março de 2011

Mulheres de Atenas - Chico Buarque e Augusto Boal

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem

Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.


BUARQUE, Chico, BOA L, Augusto. In: Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das 
Letras, 1989. p. 144.

A rosa de Hiroxima - Vinicius de Moraes







Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada 

Amar - Carlos Drummond de Andrade



Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar,desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita. 


Fronteira - Nuno Júdice



Pode ser que haja aqui alguém: o vento
trouxe um eco da sua voz, o sol ocultou
a sua sombra, um pássaro saiu espantado
de dentro dos arbustos. Há lugares que
guardam a memória de quem neles
viveu, e o tempo deixa de contar quando
nos aproximamos das imagens que
julgávamos esquecidas. As paredes
em ruína recuperam a sua cor, as
portas há muito fechadas voltam a abrir;
e tu surges, o teu rosto, o teu corpo,
as mãos que seguram o parapeito
como se o jardim ainda existisse,
e no horizonte se desenhasse uma
hipótese de primavera. Depois, volto
a pisar a erva que substituiu as plantas
tratadas nos canteiros, e afasto o lixo
que se acumula junto aos muros, para
voltar atrás, ao dia de hoje, e respirar
a melancolia que nasce desta ausência.