domingo, 27 de março de 2011

Amores, paixões, vida e etc...

Longe de ti

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram ... choram ...
Há crisântemos roxos que descoram ...
Há murmúrios dolentes de segredos ...

Invoco o nosso sonho! Estendendo os braços!
E ele é, ó meu amor, pelos espaço,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!

Florbela Espanca


Amor
Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu
no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se
então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam,
tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais
completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O
calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento
batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse
podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador.
Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E
cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia
a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas,
o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das
empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e
forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que
plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco
e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura
dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico
encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com
o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima
desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a
cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita
pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas.
E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num
destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.
O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram
filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma
doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem
a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes
invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade,
alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de
seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com
felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida
de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando
a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da
família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração
se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que
sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que
as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou
levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles.
Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio
exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã
acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma,
fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava
anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais
úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável.
Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de
mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de
descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé,
suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa
intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um
homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar —
o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão.
Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o
parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir —
como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a
impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais
inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para
trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um
grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o
bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma
expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda
incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume.
Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e
viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e
avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O
embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos
passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos
trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava
feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido;
não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o
mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de
que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as
coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso,
tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um
mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus
próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se
mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a
falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser
revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com
que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais
abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários
da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos
estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo
em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo
cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia
uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada,
uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos
sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as
roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo
jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao
outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade
aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza
em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas
débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento
não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo,
ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que
descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim
Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia
ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um
atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos
ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas
entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados
da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um
zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia
se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus
pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no
chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe
ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela
começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços
secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco
estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas.
No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do
mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que
pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um
mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por
parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que
precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era
fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando
Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe
à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim
era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros
passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam
monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam
amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era
profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça
rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A
brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu
cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na
sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada,
ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho
obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si,
com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os
segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que
sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo
lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era
grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela
brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a
vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de
viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e
rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com
espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o
mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre
fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a
ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim
Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida
pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria
se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos
que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as
costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado.
Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração
crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o
abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a
mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao
rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha
vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e
a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De
que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu
coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem
pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o
lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto,
lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e
que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar
um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de
mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia
água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa!
Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as
águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo,
também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem
é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados.
No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com
medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a
empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água
- havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O
mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo,
esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo
tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de
verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida
silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro
na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em
ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a
piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor.
A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos
dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia,
ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava
bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as
outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco
pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira
brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família.
Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos.
Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o
instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela
era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e
quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos
levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das
crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse
o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia
entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou
correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café
derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com
olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois
atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele
sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa
tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É
hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que
pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para
trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do
espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar,
como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


















Chega de Saudade
Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim
Não sai

Mas, se ela voltar
Se ela voltar que coisa linda!
Que coisa louca!
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços, os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calada assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
Não quero mais esse negócio
De você longe de mim
Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim

















Folhetim
Chico Buarque

Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim

E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim

E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que é o maior e que me possuis

Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim 

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