sexta-feira, 15 de abril de 2011

O amor é LINDO



MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco. 
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Infância roubada - Simone Del Rio


As revoluções liberais, especialmente as industriais, triunfo do capitalismo, promoveram uma ruptura no meio social, irrecuperável: a criação da família nuclear burguesa e proletária.
Na Inglaterra do séc. XVII, os cercamentos expulsaram a massa de camponeses, despojados da habitação, do pão e da terra. Deslocaram-se multidões no grande êxodo  para os centros urbanos, em direção às  manufaturas, depois às fábricas.  Bandos como ratos, vivendo como ratos,  disputando vagas e salários em troca da força de trabalho, vendendo seus corpos desnutridos e descartáveis.  
Se as guerras, as pestes e as grande fomes geralmente rompem com o equilíbrio social , o capitalismo ultrapassou até mesmo a idéia de crise ao prometer de modo perverso um futuro de progresso e evolução tecnológica, sem incluir aqueles que produziam a riqueza para os donos dos seu espíritos e dos meios de produção, a condição para alcançar o prometido. Além de construir a miséria, a pobreza absoluta,  em larga escala por todo o planeta, o capitalismo  interveio nas estruturas  tradicionais, criando, na esteira dos novos modos de produção, alterações violentas na cultura e na vida social.
 Se a tradição trazia no baú uma precariedade constitutiva, ela simultaneamente obrigava à  solidariedade. Não exatamente pelos nobres motivos  propalados pelo cristianismo. Era impossível desde à Baixa Idade Média que um indivíduo estivesse isolado,  sem a custódia da vida aldeã, em que a base da sobrevivência dependia da agricultura e do artesanato.  
 E.P. Thompson conta de modo direto como essa solidariedade ainda se manteve na luta nos campos ingleses, quando transformados em pastos e negócio.  
Lembro de um comentário , se não me engano de Sennet, que é   mais cruel estar  desempregado em Wall Street do que na Sicilia. A perda de altos salários, de status, o sentimento de fracasso e vergonha, põe o indivíduo  à nu, sem ter a quem recorrer, enquanto que na típica família siciliana o problema de se dilui no corpo familiar ,  extenso, complexo de relações entre  pais, irmãos, parentes e  agregados.
No século XIX, surgiu também  “infância”. As crianças, antes ignoradas, oh, pobre Marcel, como sofreu, passaram a ser o centro das atenções da família reduzida à pai e mãe, ocasionalmente juntos dos avós e tias solteiras, para que fossem  educadas dentro do novo sistema, preparadas para reproduzir suas normas e valores na vida adulta.   
Numa tacada só, o capitalismo inventou a burguesia,  dona das  fábricas  e das minas, da matéria prima, dos negócios,  do lucro, e malbaratou a vida do trabalhador proletário. 
Formatou ainda   uma outra  invenção, particular desses tempos modernos: a  grande provedora do individualismo,  a classe média.  O resto, o lúpem, que contasse com o desvelo das senhoras piedosas que lhes assistiam à razão, combatendo os vícios, o alcoolismo, a prostituição, com a palavra de Deus e as esmolas, diligentes, antes do chá das cinco.  
Como se crer superior, se não está presente um infeliz desprovido de humanidade, para reiterar por contraste a diferença "original"? Senão, fica todo mundo com ar de família proletária na foto. 
A classe média passa ser a avalista voluntária das hierarquias sociais, atenuando a luta de classe com o travo da moral,  fomentando  os valores da convivência por meio da afirmação da  família nuclear, reafirmando o individualismo. A segurança de sua fé no deus ex-machina futurista articulava-se com as pregações ideológicas da modernidade, rumo ao futuro.
Vizinhos, estrangeiros, estranhos, exóticos,  pobres  perambulando na rua eram os inimigos, jamais o patrão.   Que fossem para longe das vistas das crianças e dos jovens. A comuna de Paris fora uma lição exemplar do poder devastador das  classes perigosas, estrategicamente  tornadas invisíveis nas periferias criadas pelo Barão de Haussmann.
Ergueram-se avenidas para dar passagem aos canhões, galerias e jardins sóbrios, cuja geometria expressavam a ordem e o progresso, especialmente a imediata ordem. 
Do mesmo modo que a rua era o campo inimigo a ser controlado e domesticado, os  muros e os  pequenos jardins erguerem-se,  com modéstia horizontal, para proteger o que se passava dentro das quatro paredes: a privacidade. Uma espécie de paralelo , alegoria pobre, com a empresa privada,  no sentido oposto do que fosse comum, público. Mas também um aconchego para uma sexualidade confinada no casamento, assolado pela dupla moral, hipócrita, na distribuição econômica do afeto para poucos, entre si e para si.  
As novas  instâncias privadas  incidiam  sobre o corpo feminino, prestigiado pela maternidade, na  conformação das  mentes  das crianças. Mimetizavam  geograficamente as relações de poder e domínio no  cotidiano. Fábricas, hospitais, prisões,  casas e apartamentos organizavam a vida geometricamente nas caixinhas,  escaninhos,  quadradinhos dos escritórios, e desfiguravam o espaço público que antes era o das festas, feiras, carnavais, boêmias,  procissões e especialmente o encontro dos agitadores, poetas, amantes, todos políticos.  As galerias sem bancos impeliam as passantes de preto, em luto, à circulação lépida e anônima.
Na entrada do século XX, um corpus de conhecimento se desenvolve para dar conta da tarefa às vezes mal assimilada. Afinal,  amor e sexualidade circulando nos pequenos espaços, confinados, comprometiam a saúde física e mental  necessárias à formação dos novos contingentes  de trabalhadores. Psicólogos, psicanalistas, médicos,  assistentes sociais, pedagogos, novas encíclicas, teologias  etc.
O empenho da saúde, para que os costumes dos "homens bons" fossem positivados, traduzia-se como saneamento, limpeza, retidão; desenhava-se  em linha reta e ascendente.  Cada qual com sua promessa de paraíso, conquanto o kit de felicidade tivesse a garantia daqueles com o poder da pronta entrega.
Ainda assim,  a notre musique, ao som das bombas e dos raids aéreos, pôde rejeitar  à volta ao paraíso cercado de arame farpado e grades de com-domínios. Alguém que preferiu abrir as janelas e saltar dos muros. 
Hoje, nunca sei bem o que se passa hoje, arremessam os pimpolhos pelas  janelas dos quartos,  dos carros, viadutos,  pelas janelas das escolas , de  caras sujas  e empapadas de crack.
Entretanto, e entretanto, a classe média insiste que papai e mamãe, separados, sem tempo,  embriagados pelo poder de touros em labirintos, cagando e andando para o fio e o com-fio, ainda pensam em si próprios como provedores suficientes da boa educação, sem um senso ético e estético para a formação das crianças.  
Se agora pautam-se por algo que está além das suas paredes ocas e do mofo dos armários, só poderia ser a vicária sirene dos carros  de polícia, tornando seus filhos reféns de  um autoritarismo tonitroante.
Pobres ditadores, infelizes títeres dos discursos para seres inermes. Continuam cegos de afeto e vazios de luz, batendo a cara contra o muro.