sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Metade de Mim - Ferreira Gullar

Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste...
Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.
Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.
Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...
também

Questão de opção - Álisson da Hora

Paul Celan, em seu discurso O meridiano, proferido em ocasião do recebimento do Prêmio Georg Büchner, em 1960, nos diz que o poema é solitário e andante, mas também afirma que ele precisa viver o mistério do encontro. Para ele o poema precisa de um Outro e o quer ansiosamente.

O que isso quer dizer? Em o que tais palavras do Celan nos podem ser úteis?

Para mim, e para qualquer pessoa sensata, a busca de um antilirismo empreendida pelos concretistas, diziam eles baseada na poética substantiva do João Cabral de Melo Neto (fácil evocar um consagrado, não?) e levada às últimas consequências por meio de chaves léxicas, signos, acabou por engessar a poesia brasileira, e os poetas novos (talvez à exceção dos marginais, que estavam pouco se lixando para tais regras) ficavam temerosos de irem contra a maré e serem tachados impiedosamente de “bregas”.

Mas, se poesia é subversão, sempre, o público não se preocupou em se esforçar a entender as charadas concretistas. E, à revelia dos que queriam enxergar refinamento estético apenas naquilo prescrito pelos “entendidos”, os poemas continuaram a buscar pelo Outro. Não importasse se com recursos “ultrapassados”, “arrumadinhos”.

Os poemas são feitos e encontram sempre o seu eco.

Obviamente que neste mundo virtual que cria factoides com velocidade horripilante, aparecem cada vez mais “poetas”, sempre dispostos a disseminarem suas poéticas e aquererem se impor, justamente porque SÃO.

Não, não são. Até para utilizarem as ferramentas então consideradas ultrapassadas e exprimir algo mais do que o silêncio é necessário, paradoxalmente, silêncio. E bom senso para não desabar no abismo da verborragia e da pieguice.

Até porque hoje a ânsia em fazer poesia que alie cotidiano, com uma linguagem mista de estranheza e familiaridade, parece ser a tônica. É aí que percebemos quem é capaz de fazer isso sem descambar para um confessionalismo excessivamente cansativo e quem sabe que a poesia sempre é mais além, como imagens de música que rompem a transparência dos copos e dança nas janelas da brevidade. Letícia Coelho nos descreve isso:


Porque de breve
Só o tom…
A semi do quase
Que se atreve.

Breve é suspiro de quem quase falou…
O sorriso é contra alto,
Do tenor, o saxofone
Quase-amaldiçoado. 
Porque de breve
Só Lembranças…
(Bemol) 
Dó-Ré-Mi-Fá-Sol
Partitura remida
Azul é a página porque é sopro, Bendita!
Não bate na mão,
Não canta,
Não se batuca,
Duas pedras de gelo…
É tenor,
MusicaDor.

(É tenor – 3 de março, 2011)

Dizer-se “poeta por opção” pode causar reações inusitadas àqueles que sempre pensam que os poetas – via de regra – são naturais. Por mais que se insinue o dom, a opção sempre demonstrará que a preocupação em se ater ao seu ofício é o diferencial ao tipo de poeta que simplesmente crê que a inspiração aparece e põe pronto à sua mente o poema a ser escrito. A opção exprime o bom senso em acreditar na própria autocrítica, que se remexe nas entranhas do poeta, que respira fundo, na busca de suas palavras para tecer suas trovas:


Faço da trova a ponte dos pés
Açudes de carma futuro
Eu sei…
Difícil saber da giração do ponteiro
Se ler me causa dores nos músculos
A causa, divulgo:
É preciso abaixar para entender os rodapés.
*
*
E cansa mais que tijolo no lombo…
Poeta capacho se faz de saudoso
Dói o fígado a permanência no limbo
E se para/separa/amarra
E volta até a mesma página…
No máximo perturba o sono
E quem precisa dormir?
Se quem faz, está desperto do enjoo.
*
*
E trago mais um cigarro
Ajuda a respirar fundo,
Antagonismo perfeito… É justo
… Quando o fardo das entrelinhas
Invade chão e caminha
Rumo ao azul pesado
Das noites com pouca tinta.

(Muscular, 10 de fevereiro, 2011)

A opção em ser poeta nos mostra que a busca interminável pela Poesia passa pela luta entre o dizer e o calar. A consciência disso não existe em quem se acha “poeta natural”: o que sai em extrema profusão, sem uma disciplina que luta contra o paradoxo da subversão, geralmente desaparece diante de sua própria loquacidade. A poesia de Letícia Coelho, tão simples quanto trabalhada (e a simplicidade por vezes pede mais engenho), acorda para o papel ao relento, o silêncio que resta ao final de cada reflexão que é o escrever um poema:


Se acaba a terra,
Cai mundo, some chão, sumidouro…
Da palma do pé,
Coração de papel ao relento
Gravidade zerada…
De notas descoradas.

Se termina o ar,
Morre tudo… Tubos, doutos, conexão…
É vida partida, rima perdida
…Plana grão…
Estrelas despencam do céu
Não adianta, o perdão.

Se finda água,
Sedento mundo, anda…
Lágrimas esgotadas
Em passarelas de nariz
…Na lama, sorvendo, anda engasgada…
Sangue vomitado de chafariz.

Se vida da terra
Em compasso com ar,
Da água desperta
Fogo de mão…
Um só lamento,
Psiu… Silêncio…
Grito em ebulição.

(Se vida, 17 de janeiro, 2011)

Tal grito em ebulição seja aquele que nós emitimos contra os travesseiros ao final de algum pesadelo ou nos momentos em que nos faltam as palavras e tudo parece estar em descompasso. Somente um poeta que quer ser poeta, não o que se acha tal coisa, sabe o que é isso. Como diz o Rilke, sempre necessário, nas suasCartas a um jovem poeta, é o que, por mais que se crie a opção de deixar de ser, não se deixará de sê-lo. Diferentemente dos que encaram isso uma fase ou um arroubo, os que são poetas estão sempre em busca do Outro. O poeta, além de ser antena da raça, como pensava o Pound, é uma espécie de agregador, sempre preocupado em procurar seus iguais. E sempre preocupado em devassar as palavras, e mostrar aos incautos que a poesia não é um animal sem vísceras. Como também acharia tal coisa o Mário Quintana, também poeta por opção, a quem Letícia dedica o poema Poetasia:


E se não beija a lua, diz que mia…
Verbaliza o sol,
Poeta de tom pastel…
Que seria do teu dó, sem a ousadia?

{Porque poeta não nasce de parto
Nasce da rima na língua
Não morre de enfarto
Pois carrega o coração na tinta}

E se poeta a caneta não quisesse que fosse
Desintegraria de desgosto em cada sílaba
Desferia golpes em frases sabor agridoce
Arrancaria o osso da coluna da linha.

{ A gente reza para o santo gemido do silêncio
Que as vidas imperfeitas se mostrem
Para que brote o acaso no momento
E o desenho do perfeito, aflore.}

E se a lua do olho espirrar…
O eclipse do choro vinga
Cílios se dobram para amanteigar
O poeta vadio que abraça a moringa.

{ Porque das luas nos interessa o queijo
Das nuvens, o sonho condensado
Da boca… A poesia do beijo
E dos outros, o não informado passado}

E se não fosse a árvore, céu não existiria
O mar seria lodo de preces e pecados
E a poesia…
Ah, poesia… Seria lida por endoscopia.

(Poetasia, 22 de outubro, 2011)

Letícia (Losekann) Coelho é formada em pedagogia, mas é “poeta por opção”. Mãe do Lucas e esposa do David Nóbrega, atualmente se dedica integralmente a Editora Novitas em que é editora em parceria com seu marido. Participou do evento “Mesa para oito” na livraria da Vila em São Paulo (debate de poesias) com outros autores em Março de 2008. Participou, também, da coletânea da editora Komedi no ano de 2008 e lançou o livro: “Ensaios Amadores… Ou não”. Em 2009 participou da I Coletânea Scriptus – A livre escrita que foi o primeiro livro publicado de sua editora (Novitas). Organizou a exposição: “Porto Alegre: imagem e poesia” no CEEE Erico Veríssimo, onde foram convidados vários poetas a escreverem sobre a cidade, utilizando fotografias de David Nóbrega. Declamou Sophia de Mello Breyner Andresen no Instituto Cultural Português em Porto Alegre. Em 2010 participou do e-book “Apenas o necessário” e esse ano publicará o livro de poesias Numérica. Além do seu blog pessoal, Letícia colabora nos blogs Scriptus Est e Bordel Bordado, e está no twitter.

Walquíria - Isabella Kantek



O revólver era calibre cauteloso. E as viagens que eles faziam, desassossegos. Walquíria estava grávida. Nove disparos de uma solidão intermitente. Seus homens, dois. Enfermeiro Francisco e marido José. Infelizes os níqueis que antecipavam a derrota dos seus, porque Walquíria tinhas planos e fez desejos.
As gravatas foram cinzas e o vestido, um branco-breu. Resíduos. Os convidados sentaram-se no banco de madeira do pátio do estabelecimento. Suas expressões, cavidades sedadas de espanto. A boca arregalada. E o padre que era improvisado. Bonifrate o seu nome. Aconteceu desse modo, a clínica liberou a noiva e o enfermeiro veio num ajuste galhardo. O casamento há treze anos em estado de remissão.
E ela tinha delírios, distúrbios mal-aventurados e cegos de existência. Desde a pequena infância.
José trabalhava na farmácia da Rua da Glória e constantemente viajava nos finais de semana, carregando Francisco junto, porque desenvolveu estranhamentos e receios que cresciam umbilical. O enfermeiro nunca contestou, também Walquíria nunca replicou. As pílulas desciam pelo esôfago como num conto triste. E o silêncio testemunhava a falência da intimidade.
Houve o dia da mudança da lua. Afastamento dos corpos. Os dois se prepararam para a viagem consagrada, enquanto ela no sofá causava sorte, redonda. Francisco se aproximou com o remédio na palma da mão dissimulada. Olhou para ela e sorriu oco. Walquíria fez crer que engoliu o engodo enquanto o escondeu no governo da língua. A lua invadia e plantou a pílula no vaso de flor. Regou com desconfiança.
Revirou a casa mas não encontrou vestígios sobre os dois, contra ela. A casa era de madeira e inundava imagens. Walquíria conhecia o triângulo e alguns nãos familiares. Seus delírios vieram, perseguições sanguinárias. E ela correu de si mesma com as mãos que escondiam o seu rosto. Assim, a bolsa rompeu e as cólicas vieram desconforme. Viscerais.
Deitada no chão da cozinha sentiu o azulejo e suas cores. Um português insípido. Sozinha, eram remotas as suas vinganças. E urrou José, rugiu Francisco, mas o intervalo de tempo e a distância, inalcançáveis. Pariu abandonada querendo que eles estivessem por perto. Querendo saber o paradeiro dos dois. Alguns espinhos são cravos.
Ocorreu que eles soubessem do nascimento a data. Francisco devia saber, reconhecer os sinais, já que a lua era popular para todos. Nesse caso, foi planejado, José.
Com o bebê gritando nos braços fez o que melhor podia e cortou o cordão com a tesoura da cozinha. Cortou também os seus laços e as fotos do casamento que penduraram na parede da sala. Plasma. A criança recém-nascida repousava no seu colo com os olhos ainda exilados do mundo. Walquíria amamentou e o leite que desceu era segregado. O bico do seio começava a doer estilhaçado e o útero girava epopéias. A mulher estava fraca e arrumou um jeito de caminhar até o quarto com o bebê enrolado em uma toalha. O tecido trazia as inscrições da clínica onde Walquíria havia passado a maior parte da sua vida. Dispositivos da loucura. Lembrou-se da arma. E da vida em camadas bipolares. Lembrou-se das punições. E do uso dos prazeres. De tudo aquilo que ela não sabia sobre si mesma, induzida a pensar.
O barulho do motor na garagem correu navalha e o medo cresceu no peito de Walquíria lentamente, sem ruído. O revólver velado entre os corpos dormentes. Eles entraram na casa e o espaço compreendido entre o passo de um e outro era o rosto do bebê.

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Händel Water Music ''Wassermusik'' Suite No.3 in G major, HWV350