sábado, 29 de outubro de 2011

Deus permanece - Joanna de Ângelis


Jamais abandono, solidão, infortúnio.
Deus permanece contigo.
Ele é o fulcro gerador de poder, em torno do qual tudo e todos gravitam.
Dele é a linguagem positiva, atuando a distância, no equilíbrio cósmico, na força de atração das moléculas.
Magneticamente a Ele atraídos, estamos associados uns com os outros na grande obra de regeneração.
Sua ação se expande e produz efeitos que se devem realizar através dos fenômenos vivos da Natureza.
Quando as circunstâncias se apresentam aziagas, fomentando sombras e amarguras, quando as enfermidades predominem, diminuindo as resistências; quando as necessidades se multipliquem em turbilhão de inquietudes; quando os apodos invistam sem piedade e todos se tenham ido, Deus permanece contigo.
Quando um homem cai, há um distúrbio no equilíbrio universal.
Quando ele se reergue e avança, a harmonia sideral se reorganiza.
Tu és um cosmo no Universo, e as leis que te regem o destino impõem-te a gravitação harmônica em torno do Astro-Rei.
Deus aí permanece.
Condutores orientam o passo.
Mestres conduzem o ensino.
Leis governam a vida.
A tua vida escreve páginas que irão influenciar outras vidas, nelas permanecendo como exemplos, estímulos ou derrotas.
Deus permanece sempre guiando-te e fortalecendo-te para o fanal feliz.
Não o duvides, nem o desconsideres.
Descobre-O, pois que Ele permanece contigo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Silêncio - Eugenio de Andrade

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Primeiro beijo - José Luís Peixoto



Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontramo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho. 
Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma noturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração. 
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer. Corremos pelo passeio de mãos dadas. A minha mão a envolver a mão fina dela: a força dos seus dedos dentro dos meus. Na noite,os nossos corpos a correrem lado a lado. Quando paramos: as nossas respirações, os nossos rostos admirados um com o outro: olhamo-nos como se nos estivéssemos a ver para sempre. Quando os meus lábios se aproximaram devagar dos lábios dela e nos beijamos, havia reflexos de brilho, como pó lançado ao ar, a caírem pela noite que nos cobria. 

José Luís Peixoto, in 'Cemitério de Pianos'

domingo, 16 de outubro de 2011

Nacqui all’affanno… Non più mesta

Frederica von Stade – Rossini – Cenerentola. Regente Claudio Abbado

De lugares e saudades - Fátima Quintas


Chove. E chove. Os relâmpagos clareiam o ambiente com intermitentes fachos luminosos. Sinto a força da natureza numa noite aparentemente igual às outras. A diferença se faz no céu fechado, nuvens cinzentas, trovões a distancia e a claridade a faiscar luzes naturais. Vou à varanda para inspirar o cheiro da terra molhada, a detonar laivos de lembranças. Há alguma coisa de ancestralidade nesse cheiro tão presente e tão antigo. Não sei o porquê da remota evocação, mas a verdade é que a terra agrega a simbologia materna: a Mãe-Maior, útero agasalhador, fecundação.

Sinto o poder de um manto protetor quando me volto para sensações ligadas à terra. Sou urbana, mas a vida agrária me encanta, espelho de sentimentos mais puros, de relações pessoais, de amores mais verdadeiros, de carinhos frequentes e generosos. Gosto de remeter aos engenhos, a um passado que me aponta a luz do futuro. Passadismo? Não sei. Talvez apenas saudade. Sim, há em mim uma saudade infiltrada na carne, saudade difusa que não sei explicar. Não adianta enganar-me com outras referências, espio o futuro com olhos no retrovisor. Do ontem extraio o sumo da minha identidade. Os longes me fortalecem. Não gosto, entretanto, de revisitar os lugares por onde deixei pedaços de mim. Acode-me a sensação de profaná-los neste retorno nem sempre voluntário.

Tal profanação aconteceu outro dia quando visitei uma amiga que mora no velho casarão da infância. Altiva e um tanto intransigente, ela reage à fúria imobiliária e, assim, solitariamente resiste às suas próprias ruínas. Foi uma tarde devastadora. Lá chegando, deparei-me com um ambiente lúgubre, triste, sorumbático. O silêncio dos móveis me incomodava, cristaleiras e aparadores perderam a serventia — já não escutavam as nossas vozes, eram outras as vozes que algum dia lhes falaram. O imobilismo da sala reluzia sob uma quietude violada. E, no entanto, tudo estava lá. Faltava o tempo condizente aquele cenário. Não acredito em tempo morto dentro do critério da abstração. Imortal, sim, como superação do tempo apenas histórico. A cronologia daquela sala havia, contudo, transposto o calendário linear. O salto acontecera. Irreversível em se tratando de mensuração de ciclos de vida. A soma dos momentos, das horas, dos meses torna-se absolutamente irrecuperável. Não há como ignorar a dinâmica do processo; a decorrência dos dias exige mudanças.

O tempo corresponde à sucessão de momentos, um atrás do outro, em perseguição, em modo contínuo, com voluntarismo próprio, ele, o tempo, independente de qualquer imponderabilidade. E era exatamente este tipo de estranheza que em mim se apoderava na tarde da visita à amiga. A lembrança reconstrói o tempo de maneira etérea, jamais em materialidade. São os nossos pensamentos que o refazem numa imperativa circularidade. O sonho tem a cor do momento sonhado. O seu traçado se adapta a diversas perspectivas. Basta evoluir ou involuir em elaborações.
Na sala, apalpei vários objetos. Inertes, na feição de concretude, recusavam a invasão do toque. Aceitei a condição de intrusa. O tempo congelado petrificava-se em imagem intocada. Uma foto na parede. Nada mais. Como Itabira de Drummond.

O portão, fechei-o, à saída. Do casarão restam as saudades lá habitadas. A essência do tempo já não é a mesma. De geração em geração, os silêncios se metamorfosearam. A amiga insiste numa vida falseada em modelos inexistentes. É preciso entender que ali o tempo enterrou as circunstâncias. Agora, valem tão somente as lembranças armazenadas.

Chove. E chove a chuva das reminiscências. A terra molhada, fragrância arcaica, encarrega-se de avivar rememorações.

Entre o Sol e a Lua - by Fátima Quintas - Lembranças do Recife



“A vida só é possível reiventada”, anuncia Cecília Meireles. Cada dia reclama perspectivas novas, um projeto diferente, alentos de ressurreição. Nasço a toda hora para morrer adiante e nascer de novo. Um périplo flutuante, instável, alternado. Se o tempo é a medida do movimento, importa que os jorros interiores o modulem em forma de mandala — numa ascendência espiralada. Os amanheceres pedem horas alvissareiras. Não basta acordar e abrir a janela, olhar a natureza e vigiá-la com atenção, mas inseri-la como parte da própria vivência. Colher uma flor supõe um esforço de pura sensibilidade. E sob o sol ou a chuva reconstruo as horas vindouras. Não é preciso muito para reinventar a vida. Depende apenas da nossa capacidade criativa.

Falo tudo isso porque um amigo me indagava em noite festiva: “Você hoje está triste; por quê?” Recorro de novo a Cecília Meireles: “Tenho fases, como a lua./ Fases de andar escondida,/ fases de vir para a rua.../” O mundo por vezes se mostra chocantemente superficial, postiço. Então me recolho em refúgios protegidos. Evito o excesso de exposição, fecho-me no claustro, opto pela vida monástica — algo conventual que me defende das possíveis intempéries. Em outros instantes, deixo-me envolver por uma melancolia advinda da fragilidade, a minha. E não tenho forças para recriar o dia. As palavras do amigo assaltaram-me como um alerta diante de aparências transitórias, quando a nostalgia se estampa nos olhos desprovidos de muros de defesa. 

Reinventar a vida é reiniciá-la dia a dia. São os recomeços que ofertam energia à caminhada, um pouco aqui, um pouco ali, sempre um achado valoroso dentro de nós mesmos. Vasculhar o íntimo é a única maneira de reavivar utopias. A emoção depende de uma ordem interior. E essa ordem exige que os elos sensitivos estejam em harmonia. Que nada escape à deliciosa rotina, que dia e noite se completem na irreversível sucessão. A noite não representa a despedida do dia; simboliza o seu clímax, a reverência aos passados, as possibilitações futuras. Pelo menos para mim, pois é no silêncio da noite que sacolejo as vontades. 

Mexo e remexo nos esconderijos. As coisas são indefiníveis na essência. O exagero de definições empobrece, pragmatiza o cotidiano, limita, reduz o que não pode e nem deve ser refreado. Sou um novelo de emaranhados, de linhas que não se sobrepõem, de cores e matizes diferentes, uns fios mais grossos, outros mais finos, todos independentes e, no entanto, interconectados nas dessemelhanças. Há altos e baixos que impulsionam o equilíbrio do núcleo existencial, triste ou alegre, ao embalo da diversidade do eu. E Cecília Meireles sempre me acode, a voz da poetisa explode: “Já fui loura, já fui morena,/ Já fui Margarida e Beatriz./ Já fui Maria e Madalena./ Só não pude ser como quis.” Será que a máscara se colou ao rosto ao modo de Fernando Pessoa? Em que beco perdi a minha face? É a mesma Cecília Meireles que desenha o retrato: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo... Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida/ a minha face?” Estou triste e alegre — nos interstícios do sol e da lua. As mudanças fazem parte de uma ciranda prenhe de circunvoluções. É necessário acumular sensações, sem receio de mergulhar no ermo reflexivo; do frenético redemoinho, extraio o que de melhor preservo. Cultuo uma dinâmica incansável, fujo de um polo para o outro. Atraem-me os contrários. E me espio intensa em todos os momentos, a transparecer o riso e a lágrima. E naquela noite estava realmente triste.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Obstáculos - Joanna de Angelis

"Aquele que cede ante ao obstáculo, que desiste diante da dificuldade já perdeu a batalha sem a ter enfrentado. Não raro, o obstáculo e a dificuldade são mais aparentes que reais, mais ameaçadores do que impeditivos. Só se pode avaliar após o enfrentamento. Ademais, cada vitória conseguida se torna aprimoramento da forma de vencer e cada derrota ensina a maneira como não se deve tentar a luta. Essa conquista é proporcionada mediante o esforço de prosseguir sem desfalecimento e insistir após cada pequeno ou grande insucesso. O objetivo deve ser conquistado, e, para tanto, a coragem do esforço contínuo é indispensável. Muitas vezes será necessário parar para refletir, recuar para renovar forças e avançar sempre. É uma salutar estratégia aquela que faculta perder agora o que é de pequena monta para ganhar resultados permanentes e de valor expressivo depois."

domingo, 9 de outubro de 2011

CRIATURA - Rodrigo Della Santina


Ergue tua cabeça, criatura,
Sê completa em tua imperfeição!
Descobre teus olhos, tira-lhes as pálpebras que os cobrem, e vê,
[quase que inteiramente, diluindo-se célere, como no
[movimento browniano, a vida miserável ante a ti.
Vê e ajoelha: a miserável és tu.

Ó, criatura, não balbucies,
Não tremas inutilmente os lábios;
Guarda o teu espanto, a tua dor, teu desespero;
Guarda o teu medo e tua vontade de chorar.

Não deixes roupas sujas sobre a cama.
Não deixes sobre a cama roupas sujas.
Limpa tua casa como se a vida fosse justa e tudo no mundo te fosse
[indiferente ou desimportante.

Calça os teus sapatos de trabalhar,
Veste a tua calça de trabalhar,
Põe tua camisa e teu chapéu de trabalhar
E sê como és, ó criatura.

Mas ergue tua cabeça,
Tua cabeça ergue,
Não para sentires orgulho,
Mas para te enojares de ti sabiamente
.

domingo, 2 de outubro de 2011

FUNGOS NAS FLORES - Misty e Eu.



Não era suposto ter chegado onde cheguei. Não era suposto ter-me desalinhado dos sinais de luz que delimitam as verdades racionais em mim até me ver assim neutra e fragmentada. Olha, vou contar um segredo que toda a gente vai ouvir. Ainda bem que me perdi no teu nome. Mas hoje eu não sei se sei que nome é esse. Não sei a chama do fantasma que me rouba as palavras de sensatez, subvertendo-as a poemas vagabundos de sedes infiltradas no meu sono. Só sei que nada sei pois não me ensinaste mais nada hoje. E eu tenho sede de aprender. Tenho sedes a mais dentro de mim.


Sinto sobre os meus ombros demasiadas condições, demasiados compassos de espera. Procuro significados maiores nas coisas banais do dia-a-dia, mas já não consigo ver para além de somas menores. Pedaços do que nunca foi, do que foi apenas um suspenso entre meias vidas, meios seres, meios nadas que significariam muito. Hipoteticamente, claro, significariam muito. Odeio tanto esses intermédios do que nunca é e nunca deixa de ser. Odeio a vida. Porque somos sempre apenas metade de nós próprios, metade do que queremos, e eu odeio isso, odeio, odeio-o com todas as minhas forças. Odeio ser metade de mim mesma por não me deixarem ser mais dos outros. A realidade nunca deixa. Por isso a realidade nunca é de confiança. A realidade nunca é verdadeiramente real. Não é, pois não?

Evito pensar na hipocrisia que me cerca para não tombar de vez no fundo do poço. Não me apetece escrever bonito hoje. Tudo não passa de uma fusão de inconfidências mal confidenciadas de pessoas falhadas que não se confiam. Tudo não passa de uma encenação depravada e ridícula, um espectáculo freak no meio de uma arena. Para o público se deleitar a ver. É a realidade. É uma subversão grosseira a condutas estereotipadas e auto-flagelantes. É uma ilusão. É uma merda. É um fungo viscoso e medonho que se cola à fragilidade das palavras supostamente autênticas que pairam no ar como flores da Primavera. E eu não tenho forças para destrinçar as verdades que importam. Sinceramente hoje nada de real me importa…

E o pior de tudo é eu saber que minto quando o digo. Porque eu preciso de ocultar os fungos com as flores de Primavera que pairam no ar, e ver o mundo crescer em mim na pista de aterragem que revejo à minha frente. Eu preciso disso, não entendes? Preciso de acreditar em poemas e nadas que significam tudo. Preciso de ouvir aquelas músicas da forma mais simples que é a perfeição de todas as coisas, e saber que as confidências podem ser a coisa mais bela do meu dia. E tudo estará bem, eu sei. Se ainda sobreviver com as palavras no meio do caos. Ou então tudo voltará atrás. Ao principio. À vulgar banalidade das coisas menores que é o grosseiro espectáculo da  sua vida.