domingo, 26 de maio de 2013

Como um cometa que encontra um assobio no universo - Joana Espain in Mallamargens

o corpo pouco equilibrado já mergulhado
lembra o salto de gigante
era a vida a fechar-se duas vezes
três quartos de olhar à superfície
e um aviso para não resistir do outro lado
que afinal talvez existam
as hierarquias dos anjos
um reflexo turvo na água
desenhava os seus mortos
as ruas que voavam para trás
as mãos que com elas se afastavam
talvez numa só hora
deslocada para o lado com cuidado
que na direcção de arrancar uma hora
todas as forças a imobilizam
perante o fundo de um olhar
em marcha silenciosa
as horas passadas acenam
à medida que vão ganhando rasto
e alguma beleza em serem ultrapassadas
a marcha parece mais lenta
relativa a um comboio que se vai despenhar
apenas três sinais possíveis ao silêncio
(os mesmos que existem no fundo do mar)
o sinal de regresso
e as horas passadas imóveis
estancadas à volta daquela pequena insistente
que tão bem dançava
um sambinha à superfície
sem perguntas nos bicos dos pés
(aquela hora feliz submissa ao rasto
como um cometa que encontra um assobio no universo)
aquela hora era feita de sopro ao acaso
talvez mais leve que o ar
e ali se interpunha ao mergulho
como o zumbido de uma mosca
à hora da morte

Handel - Concerto for trumpet and organ in B-Flat Major


Hino da monarquia francesa - PI Tchaikovsky


Leila Josefowicz - Camille Saint Saens - Introduction Rondo and Capricci


quinta-feira, 23 de maio de 2013

"A intensidade do olhar lançou areia e memória à paralisia" by José Antônio Cavalcanti

Chegou tenso e com uma cor esverdeada no rosto ao restaurante à beira-mar. Duas baleias marcavam duas da tarde no relógio azul além areia. Pôde vê-las atrás das ondas e da cortina de atletas e ciclistas na pista da avenida Atlântica. Nuvens pesadas eram rasgadas pelo sol, os trapos cinzas se desmanchavam preguiçosamente no varal do horizonte em reconstrução. Olhos pregados na biografia de Marighela quando, no meio da décima linha da página 356, Lilith emergiu da piscina dos sonhos perdidos. Trazia uma harpa de argila e fios de ouro abaixo de seus olhos de tempestade. A intensidade do olhar lançou areia e memória à paralisia do leitor atordoado. Lilith sentou-se amistosa, palavras soltas ao vento, direta e incisiva, sacudindo os cabelos e a vida do homem de óculos tortos. Ele nada sabia sobre as fogueiras secretas que nela nunca cicatrizaram; míope e desatinado, ampliara por cegueira e falta de gentileza o próprio deserto, cortara em finas fatias camadas de afeto, polvilhando-as de sal e luto.
Alojados um frente ao outro, após uma longa pausa e um tremor na língua, o homem decidiu-se: – Garçom, por favor, traga em duas bandejas de prata os seios de Penélope e a cabeça de Helena de Troia.
Então, Lilith, com astúcia de assassina, voltou-se em direção ao mar para ver, comovida, o navio de Ulisses afundar lentamente. Pudesse olhar em outra direção, teria observado dois olhos em escombros afundando-se nela até tocarem o céu ou o chão.

Jean-Baptiste LULLY - Ballet de Xerxès (1660)


Vivaldi Violin Concerto in D major, RV211 / G. Carmignola A. Marcon Venice B


Giovanni Girolamo Kapsberger Works for Lute & Chitarrone,Romano


Farinelli: Arias composed by Carlo Maria Michelangelo Nicola Broschi / Salzbu


sábado, 18 de maio de 2013

Delírios - Tamiris Maróstica - Mallamargens




De palavras tantas, me basto. De olhares outros, julgamentos teus e repreensões deles, bastam as já existentes. Em discernimentos cá-lá-d’onde mais houver, chega, não há mais espaço para repetições, para hábitos cinestésicos de outrora e modelos emocionais vencidos. Chega! Bastam todos os rótulos apodrecidos. Sirva-me um café sem cafeína, sem açúcar, sem a temperatura quente e sem a coloração característica, isso sim me bastará.


O céu que hoje se constitui é de um azul-desconhecido, tão vivo e tão cheio de vida que é como se toda a vida em vivência estivesse com ele, longe, e aqui na terra já não houvesse mais nada que se pudesse poetizar em maior beleza que a composição deste céu. Confio meu olhar a ele, junto das minhas pequenas viagens cerebrais e também daquelas vazias de imagens racionais. Mas sou dele, queria ser dele, escorrer em nuvens translúcidas e borradas, sem nada, apenas seguindo a espiral que não demonstra fim nem finitudes.


Lá vem as gaivotas, todas tão esbeltas e de um perfil ereto e atento. Mas hoje não vai chover e sequer estamos na praia para vê-las correr em desespero prevendo manifestações aguais futuras. Estamos em um lugar cinzento, vazio e desabitado, que dispõe apenas de um teto azul distante. Mas lá se vai o sol e o pôr-dele, assim como as gaivotas em debandada.


We Three Kings Of Orient Are : Kings College, Cambridge


A. VIVALDI, Six Flute Concertos Op.10, Academy of Ancient Music