sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O amor, meu amor > MIA




Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água 
e tudo quanto nasce 
e vive além do tempo. 

Minhas pernas são água, 
as tuas são luz 
e dão a volta ao universo 
quando se enlaçam 
até se tornarem deserto e escuro. 
E eu sofro de te abraçar 
depois de te abraçar para não sofrer. 

E toco-te 
para deixares de ter corpo 
e o meu corpo nasce 
quando se extingue no teu. 

E respiro em ti 
para me sufocar 
e espreito em tua claridade 
para me cegar, 
meu Sol vertido em Lua, 
minha noite alvorecida. 

Tu me bebes 
e eu me converto na tua sede. 
Meus lábios mordem, 
meus dentes beijam, 
minha pele te veste 
e ficas ainda mais despida. 

Pudesse eu ser tu 
E em tua saudade ser a minha própria espera. 

Mas eu deito-me em teu leito 
Quando apenas queria dormir em ti. 

E sonho-te 
Quando ansiava ser um sonho teu. 

E levito, voo de semente, 
para em mim mesmo te plantar 
menos que flor: simples perfume, 
lembrança de pétala sem chão onde tombar. 

Teus olhos inundando os meus 
e a minha vida, já sem leito, 
vai galgando margens 
até tudo ser mar. 
Esse mar que só há depois do mar. 

Mia Couto, in "idades cidades divindades"

Comício em beco estreito > Jessier Quirino



"Pra se fazer um comício 
Em tempo de eleição 
Não carece de arrodei 
Nem dinheiro muito não
Basta um F-4000 
Ou qualquer mei caminhão 
Entalado em beco estreito 
E um bandeirado má feito 
Cruzando em dez posição.

Um locutor tabacudo 
De converseiro comprido 
Uns alto-falante rouco 
Que espalhe o alarido 
Microfone com flanela 
Ou vermelha ou amarela 
Conforme a cor do partido.

Uma ganbiarra véa 
Banguela no acender 
Quatro faixa de bramante 
Escrito qualquer dizer 
Dois pistom e um taró 
Pode até ficar melhor 
Uma torcida pra torcer

Aí é subir pra riba 
Meia dúzia de corruto 
Quatro babão, cinco puta 
Uns oito capanga bruto 
E acunhar na promessa 
E a pisadinha é essa: 
Três promessa por minuto.

Anunciar a chegança 
Do corruto ganhador 
Pedir o "V" da vitória 
Dos dedo dos eleitor 
E mandar que os vira-lata 
Do bojo da passeata 
Traga o home no andor.

Protegendo o monossílabo 
De dedada e beliscão 
A cavalo na cacunda 
Chega o dono da eleição 
Faz boca de fechecler 
E nesse qué-ré-qué-qué 
Vez por outra um foguetão.

Com voz de vento encanado 
Com os viva dos babão 
É só dizer que é mentira 
Sua fama de ladrão 
Falar dos roubo dos home 
E tá ganha a eleição.

E terminada a campanha 
Faturada a votação 
Foda-se povo, pistom 
Foda-se caminhão 
Promessa, meta e programa... 
É só mergulhar na Brahma 
E curtir a posição.

Sendo um cabra despachudo 
De politiquice quente 
Batedorzão de carteira 
Vigaristão competente 
É só mandar pros otário 
A foto num calendário 
Bem família, bem decente:

Ele, um diabo sério, honrado 
Ela, uma diaba influente 
Bem vestido e bem posado 
Até parecendo gente 
Carregando a tiracolo 
Sem pose, sem protocolo 
Um diabozinho inocente".

Regresa a mi > IL DIVO < Amo muito tudo isso!!

FIRELANDS (The Best of Celtic Music) - Tracey Hewat

Sofrer para nada serve > Cesare Pavese -


Porque esquecemos os mortos? Porque já não têm préstimo. 
Esquecemos, repudiamos uma pessoa triste ou doente, em virtude da sua inutilidade psíquica ou física. 
Ninguém se abandonará a ti, se não vir nisso algum proveito. 
E tu? Creio ter-me abandonado uma vez, desinteressadamente. Não devo, portanto, chorar por ter perdido o objecto daquele abandono. Já não seria desinteressado, nesse caso. 
No entanto, vendo quanto se sofre, o sacrifício é antinatural. Ou superior às minhas forças. E chorar é ceder ao mundo, é reconhecer que se procurava algum proveito. 
Há alguém que renuncie, podendo ter? A caridade não é outra coisa que o ideal da impotência. 
Basta de virtuosa indignação! Se tivesse tido dentes e habilidade, teria apanhado a presa.

Mas isto não impede que a cruz do desiludido, do falido, do sacrificado - eu - seja atroz de suportar. Afinal de contas, o mais famoso dos crucificados era Deus: nem desiludido, nem falido, nem vencido. No entanto, apesar de todo o seu poder, gritou "Eli!", mas depois dominou-se e triunfou, e já o sabia de antemão. A esse preço, quem não queria ser crucificado? 
Há tantos que morreram desesperados. E esses sofreram mais do que Cristo. 
Mas a grande, a tremenda verdade é esta: sofrer, para nada serve. 

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

Flute Celtic Music > Irlanda