quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Procuro-te

Procuro a ternura súbita, 
os olhos ou o sol por nascer 
do tamanho do mundo, 
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas
"

A Falácia das Convicções

O intelecto humano, quando assente numa convicção (ou por já bem aceite e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez: “E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?” Essa é a base de praticamente toda a superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha o que é bem mais freqüente —, negligenciam-nos e passam adiante. Esse mal insinua-se de maneira muito mais subtil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceite tudo impregna e reduz o que segue. Até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos, o intelecto humano tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover e excitar pelos eventos afirmativos que pelos negativos, quando deveria rigorosa e sistematicamente atentar para ambos. Vamos mais longe: na constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas. 

Francis Bacon, in "Novum Organum - Livro I (XLVI)"

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O VALOR DOS CLÁSSICOS - Agostinho da Silva

Dando à palavra o seu mais amplo domínio não podemos encerrar o clássico na estreiteza das escolas e nos limites do tempo; antes o haveremos de tomar como uma raça de espírito, capaz de fazer surgir os seus representantes nos lugares mais diversos e nas mais distantes épocas; e, se quiséssemos seguir este rumo, ainda haveria a discutir se na realidade se trata de qualidades inatas, não modificáveis por uma acertada educação, ou de um grau determinado de cultura, de um valor que seria possível medir na escala ascendente do imperfeito ao perfeito; isto é, teríamos que lhe encontrar idêntica solução à que proporíamos para os problemas que levanta a existência de culturas inferiores; a luta vai desencadeada entre os partidários da circunvolução defeituosa ou da completa estrutura e os que se inclinam às virtudes da escola. Mas o que mais nos interessa por agora é acentuar que não é inútil restringirmos o conceito de clássico, ligá-lo com laço definido a um tempo pretérito; os autores clássicos seriam assim como as ilhas que emergem do grande mar do tempo; desfizeram-se as rochas mais friáveis, caíram nos fundos os milhões de vidas que sulcaram as águas, perderam-se as terras que os vulcões com ímpetos de fogo e os estrondos que abalavam o mundo tinham feito surgir à superfície; ficou somente o que soube resistir aos ventos e às ondas e lhes ofereceu alicerce seguro e rocha viva; o que foi lento e calado no nascer e tranquilo na defesa dos embates; o que pôde e soube também ir revestindo a construção primitiva com as sementes que os ares lhe traziam; o que teve a capacidade bastante para admitir as novas invenções e para abrigar todos os sonhos e projectos de uma vida contínua; numa breve palavra, o que se mostrou duradouro e fecundamente acolhedor. 

Agostinho da Silva, in 'Considerações'

domingo, 4 de setembro de 2011

Adélia Prado > Deve ser amor



É preciso fé para cortar as unhas,
cuidar dos dentes como bens de empréstimo.
O cobrador invisível bate à porta.
Não durmo, ele também não.
Deve ser amor o que nos deixa unidos
neste avesso de mística.
Por orgulho de pobre
dou por bastante a pouca claridade
e prefiro a vigília antes que ter repouso.

PRADO, Adélia. A duração do dia. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2010. p.61.

Cuerpo de Mujer - Pablo Neruda



Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.

Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.

Pero cae la hora de la venganza, y te amo.
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
¡Ah los vasos del pecho! ¡Ah los ojos de ausencia!
¡Ah las rosas del pubis! ¡Ah tu voz lenta y triste!

Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia si límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.