terça-feira, 7 de junho de 2011

O NÃO-RISO EM DOM QUIXOTE - Cacos de ludíbrio do humor

O NÃO-RISO EM DOM QUIXOTE - Cacos de ludíbrio do humor

Dom Quixote - Rosana Rocha
Desejo, por sinal, que você seja triste, não o ano todo, mas apenas um dia
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano”
(Victor Hugo)

Pouco há para se duvidar no fato de que um bom mergulho no humor abre portas de prazer. Divertir-se é apartar-se do inoportuno tédio oriundo da sisudez. Mas, como na inteireza de todo algo há metade de indubitável e metade de questionável, que venha o contraponto num trote de Roncinante. O riso é também no sempre um curioso exercício de disfarce. Um providencial pacto a favor do ócio íntimo. Firmar acordos com o que se acha superficialmente na graça é lenitivo que faz sucumbir essa indesejável e invasiva dor que é o discernimento. Muito se investiga, esmiúça e discute a respeito do que faz rir em uma obra de arte. O que é ludíbrio, entretanto, no mais das vezes voa rumo à distância no vento dos moinhos.
Há mecanismos de humor restritamente criados para fisgar o riso. Satirize-se o ponto fraco, deixe vir a pândega e cumprida está a tarefa. Há, contudo, sofisticados mecanismos de criação artística que são puro ludíbrio de humor. Nesse caso, o que verdadeiramente interessa como resultado para o criador-emissor-da-mensagem não é a fugacidade da resposta ao convite para o rir. O cintilante e engenhoso batente de comicidade que se destaca logo à entrada da obra construída tem apenas a função de desequilibrar o partícipe-receptor-da-mensagem. O intento é fazê-lo cair sem prevenções no concebido. E que nessa queda tudo se quebre, pois o que interessa mesmo como resultado final são os muitos cacos de não-riso que se espalharão pela percepção – consciente ou inconsciente – da “vítima” do desequilíbrio.
Nas artes plásticas, Miró nos despedaça em cacos de não-riso. O que inicialmente parece apenas um lúdico convite ao riso do olhar acaba por se traduzir numa abençoada noção da infinita possibilidade das formas. No teatro brasileiro, Nelson Rodrigues nos estilhaça em cacos de não-riso. A sofrível comicidade suburbana de seus personagens é mera e genial cilada emocional urdida para capturar as platéias de modo indefensável. Já no século XVII, entrementes, o clássico Don Quixote De La Macha, do espanhol Miguel de Cervantes, é primoroso testemunho de ludíbrio do humor.
É surpreendente a extensa camada de leitores que, mesmo tendo atravessado a obra atenta e afetuosamente, apenas a apresentam como um “romance divertidíssimo”. Dom Quixote – como o dizer português rebatizou – é desesperadamente muito mais não-riso do que riso. Sim, Cervantes quer a desatenção primeira provocada pelo “achar engraçado”. Não à toa, já no Prólogo do livro, trata de nos enredar a atenção de forma jocosa:
“Desocupado leitor, não preciso prestar aqui um juramento para que creias que, com toda a minha vontade, quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse imaginar (...)”.
O ardil é simples força impulsionadora destinada ao desequilíbrio e a queda. São mãos nas costas do leitor que o lançam ao mais da narração. Desocupado de si mesmo, aquele que começara a ler cai no riso já tendo caído no abismo em que o autor espera proporcionar o esfacelamento do próprio riso.
Eis, desta feita, uma missão digna dos mais bravos cavaleiros do discernir: sentar-se à borda de cada página de Dom Quixote e catar os cacos de não-riso produzidos no entender. Inevitável será iniciar tal cruzada por outro caminho que não o da observação da construção imagética dos personagens. No princípio da leitura, a triste figura de Quixote parece querer nos impelir a um superficial e desatento riso de lástima.
“(...) que podia, portanto, o meu engenho, estéril e mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca imaginados de outra alguma pessoa?(...)”.
A acentuada magreza e todo o mais da decadência física do herói deixam logo claro o insucesso. E reza o crer comum que o insucesso não merece ser levado a sério.
Contentar-se com o riso dessa impressão é não se deixar ferir pelo caco do não-riso no qual cintila a compreensão de que a fragilidade é gene universal. Está no ser de qualquer ser, seja sua compleição qual for. Há magreza, secura e enrugamento na figura de toda a raça humana. A armadura com que Cervantes reveste o patético Quixote desnuda todo leitor em todo tempo e lugar.
A curiosa oposição que a fisionomia de Sancho Pança faz a do protagonista pressupõe logo de pronto um divertido jogo de antítese. O contraste para o mirrado só pode ser o avolumado. A imagem que contraria o alto só pode ser a do baixo. A constatação desses elementos induz ao sorriso ocre do sarcasmo. Há não-riso, porém, no perceber que o paralelismo estético é a mais evidente tradução da completa pluralidade da existência. Tudo só é tudo por ser constituído de muitos.
Aprofundar a queda com destino à psique dos personagens principais é ação ainda melhor que se manter sentado à borda do livro. Nada, então, impedirá o choque provocado pelo desabamento sobre os desvarios do personagem-título. Quão desconcertante é a loucura de Quixote! Nada, todavia, que não se resolva com facilidade. Um bom e infalível reconforto para abrandar esse desconcerto é rir piedosamente da pobre turvação mental do “malfadado” viajante.
Rir da loucura ajuda a enlouquecer a sanidade. Aquele que menospreza o que se supõe insano menos preza as camadas múltiplas de sua pretensa lucidez. O caco de não-riso encontrado nisso talvez seja um dos maiores legados que Cervantes deixou para as letras que vieram depois das suas. Prova tamanha na Literatura Brasileira é o intenso sussurro quixotesco que se ouve por entre as falas e condutas do machadiano Dr. Simão Bacamarte, “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”.
Ainda no que tange à exposição da instabilidade emocional do Cavaleiro da Triste Figura, há algo que não pode deixar de ser considerado. Cabe especialmente a Sancho Pança o grande papel de agente do ludíbrio do humor. É justamente quando o personagem combate com rudeza e objetividade os devaneios de seu senhor que o autor convence o leitor a aceitar, sorridente, a poesia da loucura.
Somente a genialidade de um grande criador consegue nos seduzir a experimentar o doer do discernimento através do sorrir. A escolha por manter a consciência nesse processo, contudo, é particular.
Que não se compreenda esse texto, porém, como uma cruzada contra a fina sagacidade de se reagir ao cômico. Rir do que nos é proposto a rir é decididamente prova de inteligência. Entretanto, rir quando nos é sugerido o não-riso é sinal de devotada e triste obediência ao pacto com o ócio íntimo. Rir o riso raso é dizer “não eu”. Contudo, ler o silêncio dos cacos de ludíbrio do humor em Dom Quixote significa admitir o auto-reconhecimento ofertado como precioso regalo por Cervantes.
¨*¨
Carlos Correia Santos
Ensaio publicado na conceituada revista ASAS DA PALAVRA, número 20, editada pelo centro de Letras da Universidade da Amazônia (Unama). A publicação foi lançada em 2005, em comemoração aos 400 anos do livro DOM QUIXOTE.


The ‘Ride of the Valkyries’


Triumphal March from Aida by Giuseppe Verdi ; Metropolitan Opera House – Marcha triunfal da opera Aida