quarta-feira, 30 de março de 2011

Aparição num dia de inverno - Nuno Júdice

Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás: o amor falou através dele. Ouvirás no seu ritmo a voz que tantas vezes desejaste; reconhecerás nos seus versos o corpo que encheu a tua vida; tocarás em cada uma das suas palavras os dedos que te ensinaram a medir os dias pelas suas contas de ternura. E o tempo entrará por ti como esse rio que alagou os campos do inverno. Olharás à tua volta, vendo a desolação de uma paisagem inundada. Algures, porém, uma árvore antiga sobressai; e os seus ramos verdes dar-te-ão a esperança de uma nova primavera, em que voltes a ouvir a voz que o poema te trouxe com os seus dedos de música.

Tempo Fluvial - Nuno Júdice


Se eu definisse o tempo como um rio, a comparação levar-me-ia a tirar-te de dentro da sua água, e a inventar-te uma casa. Poria uma escada encostada à parede, e sentar-te-ias num dos seus degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia: «Não te apresses: também a água deste rio é vagarosa, como o tempo que os teus dedos suspendem, antes de virar cada página.» Passam as nuvens no céu;  nascem e morrem as flores do campo;  partem e regressam as aves; e tu lês o livro, como se o tempo tivesse parado,  e o rio não corresse pelos teus olhos.

Paradoxo Natural - Nuno Júdice


cactus
Na luz indecisa que deixa adivinhar a manhã, a névoa que impregna o ar desfaz-se quando os dedos de fogo do sol  a limpam, restituindo ao dia a sua transparência. Mas a mulher que ocupa o centro da paisagem não se apercebe da mudança. O seu corpo pertence à terra, e entrega-se ao ritmo subterrâneo das raízes, ouvindo o canto que regula a passagem das estações. Um desejo de sombra apodera-se da sua alma; e conta o tempo que falta para a noite, para se entregar ao silêncio do mundo, no lento eclipse dos sentimentos.