sábado, 14 de maio de 2011

FLAMENCO, by Hélio Diógenes Cambuí

DANÇA FLAMENCA - BULERIAS, by Hélio Cambuí

Fandango

Boccherini Fandango - Ivanovic / Lyra

Vigília - Misty



As estrelas desenham-se frágeis num teto opaco de reminiscências. Perscruto através das paredes as poucas vozes que nos restam. De ti, apenas um gesto, o teu melhor, como sempre. Saiba eu acolhê-lo também da forma de toda a sua plenitude, e guardá-lo preciosamente numa caixa junto ao coração. 

As estrelas desenham-se sem suporte. Instalam-se no céu e nas esplanadas da rua escura, atrapalhadamente. Dei-lhes o teu nome, e uma página de diário em branco para elas habitarem sossegadas. Do outro lado da folha, uma estrofe vertida pelos teus lábios numa tarde de há demasiados dias. Em hipérbole, obviamente, como devem ser todas as cartas dos amantes.

Visto-me das cores das folhas de Outono, que não chegaram ainda. Amanhã de manhã já vou beijar as tuas mãos, e as estrelas ficarão à porta à nossa espera. Fá-las-emos esperar, como sempre? Desta vez talvez fique lá dentro mais um pouco, semi-escondida no meio dos teus braços e das faixas de música, até que a maior parte das pessoas tenham já partido para outro fuso horário. E as folhas de Outono virem andorinhas e o céu seja o de primavera vaidosa e febril.

Creio que alguém devia escrever alguma coisa acerca das estrelas a flutuar lá em cima. Eu já esqueci os nomes que lhes dei outrora, enquanto absorvia as palavras vermelhas do poema. Leio-o agora, na esperança de te ver nascer das suas linhas hiperbolicamente, por detrás do pêndulo da tua falta nestas mãos que não te agarram, como não me servem. Pego no telefone para tentar não ouvir o conta-gotas das ausências, e falo de ti às paredes do quarto. Baixinho, elas respondem-me com a tua voz, do outro lado: “Traz-me os teus caracóis ruivos. Devo-lhes algumas horas de contemplação.”

O copo ainda está vazio - Misty




O tempo quebra-nos os dedos. A bebida tornam-nos frágeis. Então partimos, partimos num horizonte sem eco, sem pegadas. As pessoas todas ficaram para trás, chegamos onde já não as conseguimos chamar. Já nem sabemos o nosso próprio nome, pois tudo se esvaziou sobre um labirinto de frases vazias. E, contudo, parece que nos caem nas mãos, as palavras, caem-nos nas mãos. 
Bebe mais um gole. Deixa-te invadir por essa inconsciência que te leva todas as razões, até ficares só com a vertigem e os estilhaços que potencialmente te pertencem. E o desejo, as mágoas, o regresso. Se pudesses regressar a um tempo que já não existe, não saberias fazê-lo. Já não sabes ser o que eras quando não eras o que agora és. Já não sabes ser aquilo que não queres.
Tenta preservar a alucinação só por mais um par ou dois de minutos, até teres certeza. Depois podes sair, e oferecer a alguém todas essas palavras que te caíram nas mãos. Pronunciá-las como deve ser, como um verso mal construído que de tão honesto nos faz estremecer. E saberes fazê-lo, agora que te sabe bem fazê-lo. Na verdade, não saberias dizer tudo isto de outra forma que não esta. Mais uma vez, só o dizes pela metade.
Era tudo tão mais simples para ti se todas as noites fossem sexta-feira agarrada ao seu peito enquanto a música soava, ou sábado de manhã enquanto no teu cérebro tocavam notas idênticas a essas. E tu a tentares tocar as teclas de um piano imaginário, no meio dos lençóis e do perfume a incenso e a sofreguidão.
Tenho medo de um dia acordar e não ver o teu rosto. 

Precisão - Clarice Lispector



O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.


Clarice Lispector