domingo, 16 de outubro de 2011

Nacqui all’affanno… Non più mesta

Frederica von Stade – Rossini – Cenerentola. Regente Claudio Abbado

De lugares e saudades - Fátima Quintas


Chove. E chove. Os relâmpagos clareiam o ambiente com intermitentes fachos luminosos. Sinto a força da natureza numa noite aparentemente igual às outras. A diferença se faz no céu fechado, nuvens cinzentas, trovões a distancia e a claridade a faiscar luzes naturais. Vou à varanda para inspirar o cheiro da terra molhada, a detonar laivos de lembranças. Há alguma coisa de ancestralidade nesse cheiro tão presente e tão antigo. Não sei o porquê da remota evocação, mas a verdade é que a terra agrega a simbologia materna: a Mãe-Maior, útero agasalhador, fecundação.

Sinto o poder de um manto protetor quando me volto para sensações ligadas à terra. Sou urbana, mas a vida agrária me encanta, espelho de sentimentos mais puros, de relações pessoais, de amores mais verdadeiros, de carinhos frequentes e generosos. Gosto de remeter aos engenhos, a um passado que me aponta a luz do futuro. Passadismo? Não sei. Talvez apenas saudade. Sim, há em mim uma saudade infiltrada na carne, saudade difusa que não sei explicar. Não adianta enganar-me com outras referências, espio o futuro com olhos no retrovisor. Do ontem extraio o sumo da minha identidade. Os longes me fortalecem. Não gosto, entretanto, de revisitar os lugares por onde deixei pedaços de mim. Acode-me a sensação de profaná-los neste retorno nem sempre voluntário.

Tal profanação aconteceu outro dia quando visitei uma amiga que mora no velho casarão da infância. Altiva e um tanto intransigente, ela reage à fúria imobiliária e, assim, solitariamente resiste às suas próprias ruínas. Foi uma tarde devastadora. Lá chegando, deparei-me com um ambiente lúgubre, triste, sorumbático. O silêncio dos móveis me incomodava, cristaleiras e aparadores perderam a serventia — já não escutavam as nossas vozes, eram outras as vozes que algum dia lhes falaram. O imobilismo da sala reluzia sob uma quietude violada. E, no entanto, tudo estava lá. Faltava o tempo condizente aquele cenário. Não acredito em tempo morto dentro do critério da abstração. Imortal, sim, como superação do tempo apenas histórico. A cronologia daquela sala havia, contudo, transposto o calendário linear. O salto acontecera. Irreversível em se tratando de mensuração de ciclos de vida. A soma dos momentos, das horas, dos meses torna-se absolutamente irrecuperável. Não há como ignorar a dinâmica do processo; a decorrência dos dias exige mudanças.

O tempo corresponde à sucessão de momentos, um atrás do outro, em perseguição, em modo contínuo, com voluntarismo próprio, ele, o tempo, independente de qualquer imponderabilidade. E era exatamente este tipo de estranheza que em mim se apoderava na tarde da visita à amiga. A lembrança reconstrói o tempo de maneira etérea, jamais em materialidade. São os nossos pensamentos que o refazem numa imperativa circularidade. O sonho tem a cor do momento sonhado. O seu traçado se adapta a diversas perspectivas. Basta evoluir ou involuir em elaborações.
Na sala, apalpei vários objetos. Inertes, na feição de concretude, recusavam a invasão do toque. Aceitei a condição de intrusa. O tempo congelado petrificava-se em imagem intocada. Uma foto na parede. Nada mais. Como Itabira de Drummond.

O portão, fechei-o, à saída. Do casarão restam as saudades lá habitadas. A essência do tempo já não é a mesma. De geração em geração, os silêncios se metamorfosearam. A amiga insiste numa vida falseada em modelos inexistentes. É preciso entender que ali o tempo enterrou as circunstâncias. Agora, valem tão somente as lembranças armazenadas.

Chove. E chove a chuva das reminiscências. A terra molhada, fragrância arcaica, encarrega-se de avivar rememorações.

Entre o Sol e a Lua - by Fátima Quintas - Lembranças do Recife



“A vida só é possível reiventada”, anuncia Cecília Meireles. Cada dia reclama perspectivas novas, um projeto diferente, alentos de ressurreição. Nasço a toda hora para morrer adiante e nascer de novo. Um périplo flutuante, instável, alternado. Se o tempo é a medida do movimento, importa que os jorros interiores o modulem em forma de mandala — numa ascendência espiralada. Os amanheceres pedem horas alvissareiras. Não basta acordar e abrir a janela, olhar a natureza e vigiá-la com atenção, mas inseri-la como parte da própria vivência. Colher uma flor supõe um esforço de pura sensibilidade. E sob o sol ou a chuva reconstruo as horas vindouras. Não é preciso muito para reinventar a vida. Depende apenas da nossa capacidade criativa.

Falo tudo isso porque um amigo me indagava em noite festiva: “Você hoje está triste; por quê?” Recorro de novo a Cecília Meireles: “Tenho fases, como a lua./ Fases de andar escondida,/ fases de vir para a rua.../” O mundo por vezes se mostra chocantemente superficial, postiço. Então me recolho em refúgios protegidos. Evito o excesso de exposição, fecho-me no claustro, opto pela vida monástica — algo conventual que me defende das possíveis intempéries. Em outros instantes, deixo-me envolver por uma melancolia advinda da fragilidade, a minha. E não tenho forças para recriar o dia. As palavras do amigo assaltaram-me como um alerta diante de aparências transitórias, quando a nostalgia se estampa nos olhos desprovidos de muros de defesa. 

Reinventar a vida é reiniciá-la dia a dia. São os recomeços que ofertam energia à caminhada, um pouco aqui, um pouco ali, sempre um achado valoroso dentro de nós mesmos. Vasculhar o íntimo é a única maneira de reavivar utopias. A emoção depende de uma ordem interior. E essa ordem exige que os elos sensitivos estejam em harmonia. Que nada escape à deliciosa rotina, que dia e noite se completem na irreversível sucessão. A noite não representa a despedida do dia; simboliza o seu clímax, a reverência aos passados, as possibilitações futuras. Pelo menos para mim, pois é no silêncio da noite que sacolejo as vontades. 

Mexo e remexo nos esconderijos. As coisas são indefiníveis na essência. O exagero de definições empobrece, pragmatiza o cotidiano, limita, reduz o que não pode e nem deve ser refreado. Sou um novelo de emaranhados, de linhas que não se sobrepõem, de cores e matizes diferentes, uns fios mais grossos, outros mais finos, todos independentes e, no entanto, interconectados nas dessemelhanças. Há altos e baixos que impulsionam o equilíbrio do núcleo existencial, triste ou alegre, ao embalo da diversidade do eu. E Cecília Meireles sempre me acode, a voz da poetisa explode: “Já fui loura, já fui morena,/ Já fui Margarida e Beatriz./ Já fui Maria e Madalena./ Só não pude ser como quis.” Será que a máscara se colou ao rosto ao modo de Fernando Pessoa? Em que beco perdi a minha face? É a mesma Cecília Meireles que desenha o retrato: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo... Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida/ a minha face?” Estou triste e alegre — nos interstícios do sol e da lua. As mudanças fazem parte de uma ciranda prenhe de circunvoluções. É necessário acumular sensações, sem receio de mergulhar no ermo reflexivo; do frenético redemoinho, extraio o que de melhor preservo. Cultuo uma dinâmica incansável, fujo de um polo para o outro. Atraem-me os contrários. E me espio intensa em todos os momentos, a transparecer o riso e a lágrima. E naquela noite estava realmente triste.