segunda-feira, 2 de abril de 2012

Insensatez - Tom Jobim


Recordação - Cecília Meirelles




Agora, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.
Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.
As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo, 
tinham a mesma exaltação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.
E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.
Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ónix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.

(Cecilia Meirelles)

Saudável Loucura - Fátima Quintas -


Abriu o livro na página certa. Leu o poema e arfou o cheiro da vida. Das palavras saltava a emoção que ela não sabia colocar no papel. Tantas vezes pensou em escrever! Desde pequena, ainda aprendendo o abecedário, seduzia-se pelas palavras, agrupando-as cautelosamente num caderninho especial.
Cedo, captou o mundo com olhos indicadores, interrogou as causas primeiras da existência e jamais se conformou com respostas rápidas e sucintas. Precisava ir além do previsível. Entender o que se passava por trás do aparentemente explicável dizia de uma ação íntima que a perseguia. 
Os adultos entediavam-se com as insistentes perscrutações. E por que isto? E por que aquilo? A infância passou célere na história da menina que sabia muito pouco. Não se cansava, todavia, de investir na sua insistente procura. Agora, adulta, a vida não lhe parecia diferente. Teria mudado alguma coisa? 
A maturidade chegara tão depressa que sequer deu conta que as reflexões aumentavam, dia após dia. Viver é um ato de loucura com riscos que vão se agigantando à medida que a consciência adquire alguma solidez. Melhor apagar do borrão desfocado a história contada e acreditar que o excesso de escrúpulos inibe os ímpetos de transgressão. Como poderia, entretanto, destruir o legado que herdou? 
Os versos falavam de amor. De um amor descompromissado, livre de amarras e de falsos rótulos. Clandestino. 
Apegou-se às palavras como quem se apega aos afogos maternos e fez desse instrumento um caminho de fé. Conhecia a sua Ilhaneza, defendia um pudor que talvez não merecesse a atenção dispensada, no íntimo, repetia ocos ensinamentos que serviram apenas para perfilar sua confusa identidade. 
Fechou o livro, apagou a luz, tentou dormir. Não conseguiu. As horas se passavam, os minutos martelavam o ritmo da irreversibilidade, o escuro do quarto possibilitava a construção de inúmeras fantasias. Deixou fluir o lado onírico. Então revestiu-se de uma energia desconhecida e, de repente, inquiriu-se abruptamente. O que estaria acontecendo? 
Não duvidava. A paixão a tomava por completo. Há muito tempo não se sentira tão bem! Levantou-se. largou os lençóis enxovalhados sobre a cama, pisou na fria cerâmica, correu até o espelho. Achou-se bonita. Confiou num rosto pretérito, jovem, quase adolescente, ainda anestesiado pelas sensações de antigas cartas de amor. Ah, as cartas de amor! Já nem se lembrava da época em que as recebeu. Não fazia mal. Era hora de resgatar os sonhos arquivados. 
O papel em branco a amedrontava. Quem não se atemoriza diante do vazio de uma página virgem de palavras? Apanhou a lapiseira – e reteve o jorro da saudável insensatez. Como é difícil iniciar. Os começos guardam enigmas inenarráveis. Iria dizer o quê? A mão trêmula refletia o nervosismo de quem se conhecia insegura. Com muito esforço, quase ensandecidamente rabiscou a primeira linha. As outras brotaram na volúpia de um dizer escancarado. 
Não quis reler. Cartas de amor não se relêem. Que o grito de sentimento se espalhasse na arritmia das frases desordenadas. A razão contrapõe-se à emoção. E ela não tinha o menor receio de rebentar-se por inteira na travessa paixão. Assinou a carta, fechou o envelope, colocou-o dentro do livro. No correio, prestes a desistir, entregou ao destino a bela carta de amor. 


Fátima Quintas é antropóloga da Fundação Joaquim Nabuco