segunda-feira, 28 de março de 2011

O NÃO-RISO EM DOM QUIXOTE - Cacos de ludíbrio do humor


Dom Quixote - Rosana Rocha
“Desejo, por sinal, que você seja triste, não o ano todo, mas apenas um dia
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano”
(Victor Hugo)

Pouco há para se duvidar no fato de que um bom mergulho no humor abre portas de prazer. Divertir-se é apartar-se do inoportuno tédio oriundo da sisudez. Mas, como na inteireza de todo algo há metade de indubitável e metade de questionável, que venha o contraponto num trote de Roncinante. O riso é também no sempre um curioso exercício de disfarce. Um providencial pacto a favor do ócio íntimo. Firmar acordos com o que se acha superficialmente na graça é lenitivo que faz sucumbir essa indesejável e invasiva dor que é o discernimento. Muito se investiga, esmiúça e discute a respeito do que faz rir em uma obra de arte. O que é ludíbrio, entretanto, no mais das vezes voa rumo à distância no vento dos moinhos.
Há mecanismos de humor restritamente criados para fisgar o riso. Satirize-se o ponto fraco, deixe vir a pândega e cumprida está a tarefa. Há, contudo, sofisticados mecanismos de criação artística que são puro ludíbrio de humor. Nesse caso, o que verdadeiramente interessa como resultado para o criador-emissor-da-mensagem não é a fugacidade da resposta ao convite para o rir. O cintilante e engenhoso batente de comicidade que se destaca logo à entrada da obra construída tem apenas a função de desequilibrar o partícipe-receptor-da-mensagem. O intento é fazê-lo cair sem prevenções no concebido. E que nessa queda tudo se quebre, pois o que interessa mesmo como resultado final são os muitos cacos de não-riso que se espalharão pela percepção – consciente ou inconsciente – da “vítima” do desequilíbrio.
Nas artes plásticas, Miró nos despedaça em cacos de não-riso. O que inicialmente parece apenas um lúdico convite ao riso do olhar acaba por se traduzir numa abençoada noção da infinita possibilidade das formas. No teatro brasileiro, Nelson Rodrigues nos estilhaça em cacos de não-riso. A sofrível comicidade suburbana de seus personagens é mera e genial cilada emocional urdida para capturar as platéias de modo indefensável. Já no século XVII, entrementes, o clássico Don Quixote De La Macha, do espanhol Miguel de Cervantes, é primoroso testemunho de ludíbrio do humor.
É surpreendente a extensa camada de leitores que, mesmo tendo atravessado a obra atenta e afetuosamente, apenas a apresentam como um “romance divertidíssimo”. Dom Quixote – como o dizer português rebatizou – é desesperadamente muito mais não-riso do que riso. Sim, Cervantes quer a desatenção primeira provocada pelo “achar engraçado”. Não à toa, já no Prólogo do livro, trata de nos enredar a atenção de forma jocosa:
“Desocupado leitor, não preciso prestar aqui um juramento para que creias que, com toda a minha vontade, quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse imaginar (...)”.
O ardil é simples força impulsionadora destinada ao desequilíbrio e a queda. São mãos nas costas do leitor que o lançam ao mais da narração. Desocupado de si mesmo, aquele que começara a ler cai no riso já tendo caído no abismo em que o autor espera proporcionar o esfacelamento do próprio riso.
Eis, desta feita, uma missão digna dos mais bravos cavaleiros do discernir: sentar-se à borda de cada página de Dom Quixote e catar os cacos de não-riso produzidos no entender. Inevitável será iniciar tal cruzada por outro caminho que não o da observação da construção imagética dos personagens. No princípio da leitura, a triste figura de Quixote parece querer nos impelir a um superficial e desatento riso de lástima.
“(...) que podia, portanto, o meu engenho, estéril e mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca imaginados de outra alguma pessoa?(...)”.
A acentuada magreza e todo o mais da decadência física do herói deixam logo claro o insucesso. E reza o crer comum que o insucesso não merece ser levado a sério.
Contentar-se com o riso dessa impressão é não se deixar ferir pelo caco do não-riso no qual cintila a compreensão de que a fragilidade é gene universal. Está no ser de qualquer ser, seja sua compleição qual for. Há magreza, secura e enrugamento na figura de toda a raça humana. A armadura com que Cervantes reveste o patético Quixote desnuda todo leitor em todo tempo e lugar.
A curiosa oposição que a fisionomia de Sancho Pança faz a do protagonista pressupõe logo de pronto um divertido jogo de antítese. O contraste para o mirrado só pode ser o avolumado. A imagem que contraria o alto só pode ser a do baixo. A constatação desses elementos induz ao sorriso ocre do sarcasmo. Há não-riso, porém, no perceber que o paralelismo estético é a mais evidente tradução da completa pluralidade da existência. Tudo só é tudo por ser constituído de muitos.
Aprofundar a queda com destino à psique dos personagens principais é ação ainda melhor que se manter sentado à borda do livro. Nada, então, impedirá o choque provocado pelo desabamento sobre os desvarios do personagem-título. Quão desconcertante é a loucura de Quixote! Nada, todavia, que não se resolva com facilidade. Um bom e infalível reconforto para abrandar esse desconcerto é rir piedosamente da pobre turvação mental do “malfadado” viajante.
Rir da loucura ajuda a enlouquecer a sanidade. Aquele que menospreza o que se supõe insano menos preza as camadas múltiplas de sua pretensa lucidez. O caco de não-riso encontrado nisso talvez seja um dos maiores legados que Cervantes deixou para as letras que vieram depois das suas. Prova tamanha na Literatura Brasileira é o intenso sussurro quixotesco que se ouve por entre as falas e condutas do machadiano Dr. Simão Bacamarte, “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”.
Ainda no que tange à exposição da instabilidade emocional do Cavaleiro da Triste Figura, há algo que não pode deixar de ser considerado. Cabe especialmente a Sancho Pança o grande papel de agente do ludíbrio do humor. É justamente quando o personagem combate com rudeza e objetividade os devaneios de seu senhor que o autor convence o leitor a aceitar, sorridente, a poesia da loucura.
Somente a genialidade de um grande criador consegue nos seduzir a experimentar o doer do discernimento através do sorrir. A escolha por manter a consciência nesse processo, contudo, é particular.
Que não se compreenda esse texto, porém, como uma cruzada contra a fina sagacidade de se reagir ao cômico. Rir do que nos é proposto a rir é decididamente prova de inteligência. Entretanto, rir quando nos é sugerido o não-riso é sinal de devotada e triste obediência ao pacto com o ócio íntimo. Rir o riso raso é dizer “não eu”. Contudo, ler o silêncio dos cacos de ludíbrio do humor em Dom Quixote significa admitir o auto-reconhecimento ofertado como precioso regalo por Cervantes.
¨*¨
Carlos Correia Santos
Ensaio publicado na conceituada revista ASAS DA PALAVRA, número 20, editada pelo centro de Letras da Universidade da Amazônia (Unama). A publicação foi lançada em 2005, em comemoração aos 400 anos do livro DOM QUIXOTE.

A Carícia Perdida - Alfonsina Storne

Diamantes e Sapatos


Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?

Elizabeth Taylor e o fim de uma era - André Barcinski















Morreu Elizabeth Taylor. Pensei em postar ontem mesmo sobre Liz, mas, como a Ilustrada me pediu um texto, achei melhor esperar até hoje.
Muita gente escreveu obituários bacanas da atriz, falando de sua importância para o cinema.
Seus muitos casamentos e escândalos pessoais também foram dissecados.
Mas o aspecto da vida e carreira de Liz Taylor que acho mais interessante - mais até que seus filmes - é sua posição como ícone do culto à celebridade.
Elizabeth Taylor praticamente inventou a indústria da fofoca. Todo editor de tablóides e de programas sensacionalistas de TV deveria fazer um altar pra mulher.
Veja bem: quando ela despontou como atriz, logo após a Segunda Guerra, a indústria cultural simplesmente ignorava o público jovem.
Até o surgimento do rock’n’roll, de Elvis e James Dean, um adolescente não tinha ídolos próprios. Filhos curtiam os ídolos de seus pais.
A geração de adolescentes americanos do pós-guerra foi a primeira da história que não precisou trabalhar para ajudar a casa. Isso criou um mercado gigantesco para a diversão jovem.
Liz Taylor cresceu no meio disso.
Ela fez seu primeiro filme aos 9 anos. Sua mãe era uma vampira dominadora, que explorou ao máximo o talento da menina, que aprendeu a se defender muito cedo.
Liz logo sacou que “ser uma estrela” não se limitava apenas às telas de cinema. Era preciso criar uma figura pública tão interessante quanto os personagens de seus filmes.
Ela foi além: sua vida foi um melodrama ainda maior e mais sensacional do que os filmes que protagonizou.
Liz Taylor fez amizade com famosas colunistas de fofoca e criou amplo material para os tablóides sensacionalistas.
Quando seu terceiro marido, Michael Todd, 23 anos mais velho que ela, morreu num acidente de avião, Liz foi consolada por um amigo de Todd, o cantor Eddie Fisher. Não demorou pra ele cair de quatro por ela.
Fisher era marido da atriz Debbie Reynolds, com quem tinha dois filhos (incluindo Carrie, a “Princesa Leia” de “Guerra nas Estrelas”). Ele largou a família para se casar com Liz. O escândalo quase acabou com sua carreira. Liz tinha 26 anos.
Depois, ela abandonou Fisher para ficar com Richard Burton, que também era casado. Os tablóides acompanharam o desenrolar do romance durante as filmagens de “Cleópatra”. Foi um verdadeiro “reality show”, muito antes do Big Brother.
Ao longo dos anos, a opinião pública acompanhou a vida de Liz Taylor como se fosse uma novela mexicana: vários casamentos, internações, overdoses, mais internações, bebedeiras, escândalos, a obsessão por jóias, a amizade com Michael Jackson...
Quase ninguém falava da grande atriz Liz Taylor. Sua vida havia eclipsado sua obra.
Barbra Streisand disse tudo: “Liz Taylor morreu. É o fim de uma era”.
P.S.: Desculpem, mas não posso deixar passar: Muricy, o problema era você!

Despedida - José Luís Peixoto


Beijo de Despedida

As crianças de um ano são pequenas. O mais incrível é que todas as pes­soas que andam pelas ruas, que dão encontrões no metro e que buzinam no trânsito, já tiveram um ano. Todas, todas as pessoas, até o demónio, já tiveram um ano. As crianças de um ano existem agora e existiram sempre. As crianças de um ano têm chupetas e têm babetes, começam a dar os primeiros passos e nós, ao olhá-las, sabemos que demorará pouco até que comecem a correr . As crianças de um ano olham-nos muito sérias. É um milagre quando dizem uma palavra, ou um bocadinho de uma palavra. As crianças de um ano usam bonés quando há sol, têm sandálias nos pés pequenos. Seguram um balde de plástico quando vão para a praia. Olham muito para os outros meninos. Vestimos-lhe calções por cima das fraldas. Quando lhes despimos as camisolas, as crianças de um ano não gostam do momento em que a camisola lhes passa na cabeça, em que o colarinho lhes fica preso na testa. As crianças de um ano são capazes de chutar uma bola, podem mesmo ser capazes de dizer a palavra “bola”. No entanto. as crianças de um ano não são ainda capazes de imaginar o futuro. Esse é um conceito que desconhecem. Podemos dizer-lhes «amanhã acontecerá isto», " elas ouvem, mas «amanhã» será uma palavra estrangeira. Qualquer um daqueles livros que se compra durante a gravidez, ou qualquer um daqueles livros que os pais que dis­põem de tempo compram já depois do nascimento, confirmam isto com gráficos, citações fiáveis e nomes de investigadores, doutores da Califór­nia. O facto de as crianças de um ano não serem capazes de imaginar o futuro é, ao mesmo tempo, o seu conforto e a sua angústia. Se, por um lado, a absoluta ignorância acerca daquilo que lhes irá acontecer é uma ausência feita de protecção; por outro lado, perante uma despedida, as crianças de um ano sofrem sem palavras porque não conseguem conceber o regresso da pessoa que parte. Pode­mos tentar explicar-lhes, dizer «volta já daqui a duas horas», «volta amanhã», «volta na próxima segunda-feira». Podemos tentar muitas coisas sem sentido. Para as crianças de um ano, as despedidas são sempre definitivas.
Quando alguém vai à mercearia, quando sai de manhã para o emprego, as crianças de um ano consideram a sua ausência absoluta. Por um instante ou por instantes alinhados e sucessivos, acreditam que perderam para sempre tudo o que constituía aquela pessoa e que talvez não fosse exprimível por nenhuma palavra, mesmo que possuíssem os vocabulários todos do mundo, mesmo que essas crianças de um ano fossem, por exemplo, o Roland Barthes. Num só dia, as crianças de um ano perdem a mãe muitas vezes, são órfãs muitas vezes. Tudo se transforma em nunca mais, as paredes voltam a ser paredes, a luz que entra pelas janelas ganha silêncio, transforma-se na sua crueldade. Os brinquedos repousam mortos no chão do quarto e no chão da sala. As peças abandonadas de legos transformam-se apenas em peças abandonadas de legos. Noutra hora, foram talvez o início de alguma coisa, duas cores que se juntam, mas deixaram de o ser. Passaram a ser apenas ob­jectos sem utilidade, porque todos os objectos perderam a utilidade, porque todos os objectos caem das mãos perante uma despedida definitiva. O vento, silencioso, toca a pele e é um lamento permanente. As crianças de um ano, dão passos incertos entre aquilo que ficou para trás. Porquê? «Porquê?» é a pergunta que as crianças de um ano não sabem colocar, é a pergunta a que não sabem responder. Tudo aquilo que fez sentido e que foi certo permanece sem explicação, coberto pela falta de explicação. As cores dos objectos mudam porque muda a luz que atravessa o céu, que atravessa o lugar onde as pessoas estão e se encontram umas com as outras e se constroem, em instantes que são como se fossem definitivos. A ausência, no entanto, é capaz de um definitivo maior. É na ausência que as crianças de um ano se apercebem daquilo que acreditaram sem consciência e da forma como essas crenças não faziam sentido, como eram enganadoras. A ausên­cia é feita de chumbo, existe dentro do corpo das crianças de um ano e tem o peso do mundo inteiro por­que tudo aquilo que é tocado pelo olhar ou pela memória é aspirado para o seu interior. Chovem perdas permanentes sobre as crianças de um ano, como se Deus ou o tempo quisessem mostrar-lhes uma verdade cruel, quisessem habituá-las a essa verdade. Mas as crianças de um ano têm olhos grandes e não se habituam a uma tempestade desse tamanho ou, mais correctamente, demorarão muito a habituar-se.
Se te falo de tudo isto é porque esse é, com exactidão, o mesmo medo que sinto quando sais de perto de mim. Nesses momentos, sou sempre soter­rado pela certeza de que nunca mais voltarás. E fico entre os livros desarrumados, entre as pilhas de papéis nos cantos da sala, entre tudo aquilo que pousámos sobre a mesa, ou nas prate­leiras, ou no chão. E sou um náufrago do apocalipse. Sou o último quando já nada interessa e mil prémios perde­ram todo o valor que lhes demos. Eu fui uma criança de um ano, como tu. Se nos tivéssemos encontrado nessa altura, ter-te-ia dado um beijo na face. Os nossos pais ter-se-iam rido e seria uma das nossas gracinhas. Agora, parece-me tão impossível a repetição das nossas horas de adultos como seria a oportunidade de passarmos por esse instante de termos novamente um ano. De qualquer modo, tento viver e, por isso, gostava que soubesses que, com exactidão, é este medo que sinto. Mas já não tenho um ano e, para mim próprio, ainda tenho de obrigar-­me a acreditar que há a possibilidade de leres estas palavras onde estiveres e que há a possibilidade de talvez, talvez, talvez quereres voltar.