sábado, 26 de março de 2011

Eu digo que há tambores...

Eu digo que há tambores...

Dois do Cesariny porque me apeteceu, só as palavras....



Corpo Visível
Mário Cesariny

A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a bela mancha
diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos braços da
sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe são
remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentando seguido pelas aves que acordam a duzentos e mais
metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
não são
quem sabe


Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada como a
proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco ou no preto
devo jogar
jogando-me contigo
malmequer
bem-me-quer
ou muito ou pouco

ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do outro lado
da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto impertinente e
desde logo minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana tende a
reduzir o indivíduo receptor ao estado de serpente
fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável


Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira da porta – a
tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da viagem –
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa avança sem deixar
qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz na orla do rio na nuvem de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas – digo o grande baile do
século na ilha


O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos meus
dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo o fio da
meada sem que é engraçado hajam batido à porta entrado
ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar


Livres
digo Livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única perfeita
silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais especta-
culares – aí a memória é fácil –
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela tu que disseste:
“vai haver uma grande guerra”
“nenhum de nós eu sei escapará vivo”


vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china
onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada
na areia
o écran que floresce
como tu como eu nos tubos que dissemos
fizemos
faremos acordar
até quando?


Amor


amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cintilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu preto as suas
hastes mudas


Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses aqueles que
nos foram queridos
na maré límpida que nos impede sabe o polvo dos mares até onde e
se haverá regresso
em qualquer lado a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda e sempre
o teu rosto
como é fácil como é belo
A Vida Inteira Meu Amor
SOMOS NÓS


O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire decidida
importância
amanheceu é óbvio amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica ou antes na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões


Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas
nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se pareça


O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de envólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção espantosa
masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual admira-te vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um – o crocodilo
e dois – o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia sobre a
cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lha à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à esquerda a
sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem atinja bravo
bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos


Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo devido à
miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que seja o
último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
- A ensombração maligna de certas lágrimas quando a alegria é mais
resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é quanto basta
para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não o está na
sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto uma flor
especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu cinzento
rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até aos confins
da terra


Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
Contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de água por
todos os lados estéreis
Contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito O MAR 

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