domingo, 27 de março de 2011

A cidade e as lembranças - Fátima Quintas


O Recife me encanta e, ao mesmo tempo, me dói, como diria Unamuno - a Espanha me dói -, com o seu traçado desvirtuado pela galopante modernidade, quando velhos e belos sobrados agonizam, reclamando tombamento histórico. Vejo suas pontes garbosas sobre o rio tão indefesamente poluído. Águas que perderam o brilho e a limpidez numa entrega involuntária à ação destrutiva de lixo e de restos de produtos químicos ou descartáveis. São inúmeras as atitudes pouco civilizadas que descaracterizam as linhas originais da beleza paisagística. Burle Marx morreu; e antes dele, morreram as praças, os jardins, as rosas com que o artista, num mimetismo mágico entre feitiço e bruxaria, procurou ornar a cidade.
Ruas com nomes significando sentimentos. A Aurora, por exemplo, decantada, na beira do rio, coreografa o silêncio da noite ou a renovação da madrugada, pressagiando o raiar do sol. Bairros de São José, da Boa Vista, de Santo Antônio, com suas antigas fachadas, suas casas de porta e janela, desfilando autênticos balcões à moda portuguesa - Alfama ou Mouraria - ainda não contaminados pelas mudanças abruptamente deformadas. Ah! Recife de outrora, de ruas estreitas, de mascates vendendo as suas pequenas bugigangas, para o deleite da menina ingênua que o esperava com a alegria nos olhos; de lampiões acesos em fins de tarde, de circos mambembes exibindo malabaristas e palhaços, ou daqueles famosos que explodiam na multidão dos adultos, alumbrados com as suas facetas; das rodas gigantes em Festa da Mocidade, de algodão doce fabricado em carros ambulantes que passeavam à espera da gurizada; da Rua Nova e da Imperatriz, concentrando o poder das vendas; da esquina da Sloper atraindo encontros afetivos, dos colégios tradicionais com namorados à porta aguardando a chegada da moça bonita que se preparava para o casamento num gesto de zelo; da banda do bairro desfilando músicos improvisados, da novela no rádio com vozes explosivas, dramáticas ou cômicas; das quadrilhas dançadas na rua em volta do arraial próximo à igreja, dos meses-de-maio rezados com fervor, das Filhas de Maria entronizadas na pureza absoluta, das cálidas noites convidativas ao passeio telúrico.
Percebo em todos os meus passos uma atração visceral pelo Recife de antigamente. Uma saudade quase final que me leva a exaltar o passado como fórmula mágica de resgatar as lembranças. A rua na qual vivi a minha infância já começa a perder a sua identidade. O casario desaparece para dar lugar aos apartamentos, altos edifícios, afunilados em 20 andares, guetos de isolamento, fotografia exata do modelo econômico especulativo que apenas visa ao mercado produtivo. Há tantos passados em mim que chego a ter medo de reencontrá-los, tal a sua força de permanência. Neto de Mendonça, a rua que tanto amei! Calmamente a percorria, de ponta a ponta, repleta de esperanças, a unir os encontros marcados com a juventude. Parecia que nada ia mudar. Tudo remetia à imagem da felicidade na Rua Dr. José Maria. O sentimento de perenidade talvez simbolize a tônica mais forte da meninice. Como se o tempo pudesse parar e apenas reeditar decalcomanias de florais já pintados.
"Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante para o meu amor passar. O anel que tu me deste era falso e se quebrou, o amor que tu me tinhas era fraco e se acabou". E foi exatamente nessa rua que recebi um anel que era verdadeiro e perdi um amor que era falso. Outros existiram, e a Rua Neto de Mendonça é reflexo de um tempo sem lágrimas. A jovialidade descartou muitas tristezas. Tirei de letra o que não pude evitar. E venci os encontros frustrados. Se esta rua fosse minha, eu a conservaria tal qual existiu.
O Recife se transformou ou eu envelheci?

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