segunda-feira, 28 de março de 2011

Despedida - José Luís Peixoto


Beijo de Despedida

As crianças de um ano são pequenas. O mais incrível é que todas as pes­soas que andam pelas ruas, que dão encontrões no metro e que buzinam no trânsito, já tiveram um ano. Todas, todas as pessoas, até o demónio, já tiveram um ano. As crianças de um ano existem agora e existiram sempre. As crianças de um ano têm chupetas e têm babetes, começam a dar os primeiros passos e nós, ao olhá-las, sabemos que demorará pouco até que comecem a correr . As crianças de um ano olham-nos muito sérias. É um milagre quando dizem uma palavra, ou um bocadinho de uma palavra. As crianças de um ano usam bonés quando há sol, têm sandálias nos pés pequenos. Seguram um balde de plástico quando vão para a praia. Olham muito para os outros meninos. Vestimos-lhe calções por cima das fraldas. Quando lhes despimos as camisolas, as crianças de um ano não gostam do momento em que a camisola lhes passa na cabeça, em que o colarinho lhes fica preso na testa. As crianças de um ano são capazes de chutar uma bola, podem mesmo ser capazes de dizer a palavra “bola”. No entanto. as crianças de um ano não são ainda capazes de imaginar o futuro. Esse é um conceito que desconhecem. Podemos dizer-lhes «amanhã acontecerá isto», " elas ouvem, mas «amanhã» será uma palavra estrangeira. Qualquer um daqueles livros que se compra durante a gravidez, ou qualquer um daqueles livros que os pais que dis­põem de tempo compram já depois do nascimento, confirmam isto com gráficos, citações fiáveis e nomes de investigadores, doutores da Califór­nia. O facto de as crianças de um ano não serem capazes de imaginar o futuro é, ao mesmo tempo, o seu conforto e a sua angústia. Se, por um lado, a absoluta ignorância acerca daquilo que lhes irá acontecer é uma ausência feita de protecção; por outro lado, perante uma despedida, as crianças de um ano sofrem sem palavras porque não conseguem conceber o regresso da pessoa que parte. Pode­mos tentar explicar-lhes, dizer «volta já daqui a duas horas», «volta amanhã», «volta na próxima segunda-feira». Podemos tentar muitas coisas sem sentido. Para as crianças de um ano, as despedidas são sempre definitivas.
Quando alguém vai à mercearia, quando sai de manhã para o emprego, as crianças de um ano consideram a sua ausência absoluta. Por um instante ou por instantes alinhados e sucessivos, acreditam que perderam para sempre tudo o que constituía aquela pessoa e que talvez não fosse exprimível por nenhuma palavra, mesmo que possuíssem os vocabulários todos do mundo, mesmo que essas crianças de um ano fossem, por exemplo, o Roland Barthes. Num só dia, as crianças de um ano perdem a mãe muitas vezes, são órfãs muitas vezes. Tudo se transforma em nunca mais, as paredes voltam a ser paredes, a luz que entra pelas janelas ganha silêncio, transforma-se na sua crueldade. Os brinquedos repousam mortos no chão do quarto e no chão da sala. As peças abandonadas de legos transformam-se apenas em peças abandonadas de legos. Noutra hora, foram talvez o início de alguma coisa, duas cores que se juntam, mas deixaram de o ser. Passaram a ser apenas ob­jectos sem utilidade, porque todos os objectos perderam a utilidade, porque todos os objectos caem das mãos perante uma despedida definitiva. O vento, silencioso, toca a pele e é um lamento permanente. As crianças de um ano, dão passos incertos entre aquilo que ficou para trás. Porquê? «Porquê?» é a pergunta que as crianças de um ano não sabem colocar, é a pergunta a que não sabem responder. Tudo aquilo que fez sentido e que foi certo permanece sem explicação, coberto pela falta de explicação. As cores dos objectos mudam porque muda a luz que atravessa o céu, que atravessa o lugar onde as pessoas estão e se encontram umas com as outras e se constroem, em instantes que são como se fossem definitivos. A ausência, no entanto, é capaz de um definitivo maior. É na ausência que as crianças de um ano se apercebem daquilo que acreditaram sem consciência e da forma como essas crenças não faziam sentido, como eram enganadoras. A ausên­cia é feita de chumbo, existe dentro do corpo das crianças de um ano e tem o peso do mundo inteiro por­que tudo aquilo que é tocado pelo olhar ou pela memória é aspirado para o seu interior. Chovem perdas permanentes sobre as crianças de um ano, como se Deus ou o tempo quisessem mostrar-lhes uma verdade cruel, quisessem habituá-las a essa verdade. Mas as crianças de um ano têm olhos grandes e não se habituam a uma tempestade desse tamanho ou, mais correctamente, demorarão muito a habituar-se.
Se te falo de tudo isto é porque esse é, com exactidão, o mesmo medo que sinto quando sais de perto de mim. Nesses momentos, sou sempre soter­rado pela certeza de que nunca mais voltarás. E fico entre os livros desarrumados, entre as pilhas de papéis nos cantos da sala, entre tudo aquilo que pousámos sobre a mesa, ou nas prate­leiras, ou no chão. E sou um náufrago do apocalipse. Sou o último quando já nada interessa e mil prémios perde­ram todo o valor que lhes demos. Eu fui uma criança de um ano, como tu. Se nos tivéssemos encontrado nessa altura, ter-te-ia dado um beijo na face. Os nossos pais ter-se-iam rido e seria uma das nossas gracinhas. Agora, parece-me tão impossível a repetição das nossas horas de adultos como seria a oportunidade de passarmos por esse instante de termos novamente um ano. De qualquer modo, tento viver e, por isso, gostava que soubesses que, com exactidão, é este medo que sinto. Mas já não tenho um ano e, para mim próprio, ainda tenho de obrigar-­me a acreditar que há a possibilidade de leres estas palavras onde estiveres e que há a possibilidade de talvez, talvez, talvez quereres voltar. 

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