quarta-feira, 21 de março de 2012

Oráculo da fé - Fátima Quintas - Recife



Se dependesse das orações de Zacarias a chuva já teria inundado o pequeno lugarejo do sertão. A terra vermelha, a lembrar um barro abandonado, recusava-se a receber sementes para a lavoura de sobrevivência. Há quanto tempo o sol não permitia a menor brecha às nuvens pressagiadoras de trombas d'águas. O gado morria de fome. Esquelético. Sedento. Aniquilado pelas durezas de um verão sem fim. Promessas não faltavam. Até mesmo Zé do Bio, um cético inveterado, começava a sentir necessidade de apelar para a bondade dos santos. 
E a Igreja, no fundo da praça da vila, reunia os paroquianos para elevar preces ao céu. As novenas se repetiam; as ave-marias e os padre-nossos, decantados em voz alta, entoavam o coro das lamentações. Os ecos estrondavam na igual intensidade do sofrimento.
A fé, essa era inabalável. Zacarias arregaçou as mangas, juntou as mãos num ato de contrição, franziu a face e ajoelhou-se. Não havia mais nada a fazer. Os riachos secaram e o filete d'água que corria já no alto do morro de Chico Bento agonizava. Tônico tinha razão, o fim do mundo começava a se prenunciar e de nada valia o esforço de tentar reverter a situação. Na verdade, nunca vira coisa assim antes. Mas, não podia fraquejar em face da hecatombe. Já passara por momentos semelhantes, agora urgia um mínimo de esperança.
Chegou em casa desanimado. Sebastiana conseguira na venda ao lado um pouco de café e o pão de sábado serviria para enganar a fome. À sua frente, o calendário, com o coração de Jesus à mostra, ostentava o dia da semana; segunda-feira. Tudo começava de novo, a luta aguerrida por uma refeição, pelo menos uma, nas vinte e quatro horas de angústia. Quantas vezes foi dormir à míngua! O estômago vazio, o corpo emagrecido, as forças se esvaindo numa paisagem esturricada de desespero.
O rosto, queimado de sol, emoldurava o cinzento dos olhos decaídos pela letargia de um mormaço implacável. Da janela, divisou os galhos secos espalhados pelo deserto, terra de ninguém, devastação completa, crianças brincando com a própria desgraça, o vira-lata de Nestor, da ribanceira dos Solitários, mal podendo andar, enfraquecido, pele e osso... Diante de si o apocalipse anunciado.
Sebastiana conhecia muito bem os desígnios do sertão. Nascera ali. Crescera em meio a desastres ecológicos. Derrubada de árvores, exaustão da terra com plantios inconseqüentes, pior, estiagem prolongada a reclamar a tenacidade dos fortes. Apesar do sacrifício cotidiano, a brava mulher arregimentava forças para prosseguir. Era ela a grande obstinada. Ele se abatia com os reveses de uma região maltratada pela aridez do clima. Homem da Zona da Mata, percorreu os caminhos da cana e sabia-se um injustiçado, bóia-fria de latifundiários, a trabalhar sazonalmente em plantações de açúcar. Apaixonara-se por Sebastiana. Casaram-se e foram morar numa pequena vila próxima a Salgueiro. No início, a rotina parecia fácil, lavouras de sobrevivência, verduras fresquinhas enchiam-lhe a boca de saliva. Zacarias recusou o sonho. Tudo mudara. Restava-lhe a fé que ainda o sustentava. Olhou para o lado e viu a mulher saindo de terço na mão, livro de missa e véu na cabeça. A igreja tocava o sino. Era hora de rezar.
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